A besta no coração dos homem

A farinha é pelotuda, grossa, mata a fome cuma mãozada só.

É o que sobrou depois que os rebelde vieram e abriram fogo na gente toda, que era feliz demais aqui na miséria e na sobra de sol. Agora a gente se encolhe nesse galpão, que é um galpão que por fora parece abandonado, e que era o fundo da venda do velho Mukeke. Ele dava uns pedaço de biscoito quando tava amolecendo, eu misturava co água e fazia uma sopa e tomava sentado no morro do corcunda cos muleque, falando das menina e principalmente da Kumpari, que era toda jeitosinha e tinha os dentinho bem piqueno e um riso piqueno e um coração grande pra todos os menino da vila, menos pra gente, que ainda era muito piqueno.

Kumpari se acabou, mas se acabou diferente da minha mãe e do meu pai, foi levada pro lado de lá da praça junto cas otras menina jeitosa, e se sobreviveu foi toda esgarçada na trasera dum jipe até morrer de perder sangue ou de desgosto nalguma vila depois da nossa. Mãe gritou co Juriparo no braço quando deitaram a porta co pé, convencendo até Deus co tanto de saliva e choro e ranho que se misturou na cara dela de uma hora pra outra, mas sem convencer o guri que abriu fogo na cabecinha do Juriparo, e antes que o corpinho dele caísse co minha mãe por cima pra proteger até na morte, meu pai me jogou pelo buraco da janela no mato, onde comecei a correr correr correr até trombar co Kanica e a gente se esconder num buraco perto do morro do corcunda.

Depois que anoiteceu e a gente não oviu mais barulho de tiro e explosão, a gente desceu e foi pro meio da praça, e lá tinha um monte de corpo caído e mais gente ainda caída por cima dos corpo. Dali tava pra nascer um rio nessa terra seca, que perigava crescer em fúria e carregar todo mundo que morreu até algum ponto estreito e barrar a água, e fazer Deus enfiar o dedo nariz adentro e cutucar aquele monte de gente que barrava a passagem, que era só o rio das lágrima que corria por dentro da cabeça de Deus e impedia Ele de chorar e ver o que tava acontecendo. Essa era a única manera de justificar tudo aquilo e quem disse isso foi Lamparoka, que deixou de ser padre quando viu os molequinho que corriam atrás dele, pedindo pra fazer mágica co papel, todos ca cabeça separada do corpo.

Eu e Kanica, a gente fica aqui agradecendo o poco de farinha que sobrou, e é regra sempre ficar um acordado pra matar os rato que querem pegar nossa farinha, e eu não esqueço de quando tive que empurrar aquele monte de gente pra achar meu pai e abraçar ele, abraçar forte, meu pai que me amou mais que todo mundo e muito mais que Deus, que só me deixou farinha.

  • Vinicius Moraes

    Bonito.

  • Vinícius Negrão Lemos Melo

    Muitu bão!!.. Dá dinté lê outras vêiz pra num perde um tiquim qui sêje..

    • http://flashfiction.com.br Santiago Santos

      Valeu, Vini! Entrô nu espíritu mesmu, man :D