Do caroço dissolvido no fundo do estômago

Nos intervalos do soluço das noites frescas, que se instaurava com os dentes pretos na janela furadinha do quarto tocando dança no trilho, eu ouvia. A voz saindo da boca dela. No chão de piso retangular, ao pé da cama, Frida. Ela se enroscava, já tinha um buraco perfeito no ponto em que a coxa conectava com o quadril. Enrodilhada em sua coluna privada, o plástico prateado do coliseu da dona, de onde aspirava o ar empesteado de esmalte e de madeira da mesa sem verniz.

Da minha cabeça, era. A voz. Cadela não falava, latia. E latia no seu característico rufo rouco, quase pestilento depois duma espécie de gripe que a fazia espirrar de hora em hora. Não na voz da minha vó, bença, que se soltou das bordas do túmulo depois de segurar ali por muito tempo, os dedos enodoados crivando a testa e a paciência da morte. Seria típico, tão típico, da minha vó bruxa, bença, tirar da bainha que a gente nem sabia que ela tinha uma adaga, só pra futricar a ponta duma espinha na testa, dar olhar recruzado, guardar e sair pitando pela casa.

A vó, bença, foi quem me deu Frida. Eu ainda era novinha. Frida era cachorra de rua que vó pegou, bença, e se dava com os gatos dela numa boa, que era o motivo de ter ficado. Me deu no meu aniversário de dez, o que a deixava agora com o quê, uns 20 anos, no mínimo. Uma anciã, Frida. Me dava sossego por caroço de ameixa. Tratado de paz. Preu estudar, trabalhar nos frilas, comer quieta, assistir meu Westworld sem aporrinhação: um caroço. Ela roía até o fim aquilo.

Lembro que eu não queria Frida. Vó, bença, insistiu. Meus pais também não queriam na casa deles, sempre organizada e sem espaço pra bagunça depois que cresci. Mas lá iam recusar presente dela? Nunca. Aliviaram quando o armário de lá esvaziou e encheu aqui em Cuiabá, pra onde vim estudar e fiquei. Quando visitava, um único pedido: deixa Frida aí, com um vizinho, um amigo.

No meu apê, não saberia me acostumar sem Frida. Mas era tempo, eu sabia, só tempo, que cachorro não vive muito mais que isso. E a morte era esperada, prevista, não a voz. A voz tinha começado matreira, noite dessas. E agora queria se insinuar noutros momentos, como quando cheguei em casa com as compras semana passada e Mariana ouviu, ela melhor que eu, a cadela falar. Não sabia dizer o quê, mas ouviu. Com caroço de ameixa, sossegava. Dei um.

As coisas de vó, bença, ficaram pros outros repartirem. Meu pai, filho mais novo dela, era quem menos queria revirar aquele monte de tralha. Doído ele, que a mãe tinha criado todos os outros oito filhos com carinho, fruto do mesmo pai, marido, e ele tinha saído às avessas depois da morte do homem, com alguém que ninguém conhecia. Amor atravessado, o que ela sentia, e ele cresceu assim, largado de colo. Ela benzia todo mundo, menos ele. E eu sentia que carregava essa herança de desgosto porque vó, bença, nunca tinha demonstrado nada por mim também, e só tinha me dado uma coisa. Frida.

Antes deu sair pra aula, Frida parou na porta. Abriu a boquinha. Me leva pro teu pai, ela disse. Assim, mexendo boca e tudo, como nunca tinha acontecido antes. A voz de vó, bença. Eu matei a aula, peguei o carro e toquei pra Campo Verde. Pai tava no trabalho, na prefeitura, mas saiu pra gente tomar um café quando mandei um whats. Frida deitada no banco traseiro. Ele não gostou quando falei que tinha trazido ela. Fui pegar no colo. Morta. Meu pai olhou meio aliviado. Disse que resolvia, enterrava no quintal. Fomos pra casa dele, cavou a terra com uma pazinha de jardinagem. Colocou Frida lá. Tampou, apalpou.

Só chorei quando cheguei em Cuiabá, tarde da noite, e olhei pro pé da cama onde ela dormia.