Do que diabos aconteceu com eles | Da temida variante mousse no cálculo científico

“Córrali, olha, no canto da tela. Dessa ali. Avisa a Uxa, ela vai querer ver isso.”

“O que são, Mli?”

“Humanos. Pelo jeito que andam. E conversam. E respiram. Veja essa parte superior do corpo, a caixa onde guardam os órgãos. Vê como não fica parada?”

Na cabine do posto de guarda, Córrali e Mli aguardam a chegada da superior, analisando o grupo perdido no meio da flora daninha entre os portões três e quatro. Tentam adivinhar como os cinco espécimes apareceram ali, já que as aberturas de dobra são calculadas nas pontas do complexo, não no meio. Não só as coordenadas desafiam uma resposta, como também a ausência de naves ou portais. Mas as soldadas carecem do nível de acesso pra entender, quanto mais fazer algo a respeito, portanto aguardam.

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“Parecem abelhas, tá vendo? Entre as flores, polinizando tudo.”

“Danem-se esses bichos. Olha as plantas. Já viu uma flor dessa antes? Em qualquer canto da Terra?”

“É verdade, Dafne. Também nunca vi essa constituição de tronco, parece madeira, mas afunda se eu aperto.”

“Os três aí, voltem pra cá, não quero ninguém dando sopa. Assim que Moreno encontrar o ponto no localizador a gente continua.”

“Nada aqui, chefia. O medidor não reconhece os elementos da atmosfera. E não parece haver um norte magnético fixo.”

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Uxa, a responsável pelo posto de guarda do portão quatro, não gostou muito de ser interrompida na hora do descanso. A legião de miniuros que havia contratado para um período de intenso prazer gelatinoso cobrava por parciciclo. Por isso foi com uma fungada que ela entrou na cabine, o capacete pendurado numa espora.

“O que as duas encontraram que não podia esperar a maldita troca de turno?”

“Na tela, capitã, olha.”

Ela vê o grupo de bípedes parado no meio do mato, segurando aparelhos pontiagudos que reconhece vagamente dos vídeos de treinamento na matriz como armas de disparo. Se são mesmo armas de disparo, os bípedes são humanos. E se são humanos segurando armas de disparo, não têm a menor ideia de onde estão.

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Em Ximba, a base militar de testes científicos fundado em 2049 nos arredores de Cuiabá, Rodrigo e Thiago checam os medidores no console.

“Ué. Pra onde eles foram?”

“O que você apertou aí?”

“Nada. Não apertei nada. Será que deu certo?”

“Vamos checar. Alô, Central. Pode verificar se o grupo chegou em segurança no quadrante quinze?”

Esperam a resposta. Eles não chegaram. Em quadrante algum. Os cientistas no outro lado da sala se entreolham.

A barriga de Rodrigo, bastante afeita aos botões do painel sem que o dono suspeite disso, ronca.

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“Vamos seguir. Não podemos ficar parados. Aqui somos alvo fácil.”

“Comandante, recomendo manter a posição. Não conhecemos nem reconhecemos o terreno. Aqui parece seguro, pelo menos até agora.”

“Dafne, precisamos de alguma cobertura. Que tal aquilo ali? O que é aquilo? Uma pedra? Enfim. É grande. Pelo menos um flanco coberto.”

“A senhora é quem manda.”

“Vá na frente, Dafne. Moreno, continue tentando o localizador. Os demais, dedo no gatilho.”

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Grolm, superiora de Hjero, superiora de Dwei, superiora de Uxa, olha todas aquelas criaturas sob seu comando, amontoadas na cabine do posto de guarda. Numa das telas, o grupo de humanos sentado na área de mata daninha entre os portões três e quatro. E nenhuma das pamonhas querendo se responsabilizar.

“Como eles chegaram aqui, Uxa?”

“Não sabemos. Córrali e Mli os identificaram há cerca de meio ciclo.”

“E nesse meio ciclo eles não fizeram nada?”

“Nada. Só andaram um pouco, interagiram com a vegetação.”

“Alguma reação?”

“Nenhuma.”

“Quanto tempo pra descarga?”

“Dois parciciclos. Tiramos eles de lá?”

“Não dá tempo. Se chegaram aqui, devem ter alguma tecnologia de proteção.”

Patas cruzadas, aguardam. Em dois parciciclos, todos os organismos vivos entre os portões do complexo são reduzidos a montículos rasos de matéria após a descarga de radiovênia. No chão onde estava o grupo, as armas de disparo e alguns ossos ainda inteiros. Grolm aponta um crânio.

“Eu quero aquela bolinha branca. Pra pendurar na parede da minha sala. Vocês duas, vão lá buscar. As armas também. Separem pra análise na matriz.”

Córrali e Mli abrem o portão e saem pra mata, ou pro que era mata e em pouco tempo voltará a ser. Sabem que sem a descarga cíclica de radiovênia essa vegetação infecciosa já teria tomado tudo.

Grolm chama Hjero num canto e diz que espera um relatório detalhado no fim do turno. Comenta que se sente nauseada. Sua subalterna diz o mesmo. Concluem que é o tempero novo da cozinheira lazarenta do refeitório.

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No refeitório de Ximba, a major Bastos e o capitão Andrade, responsável direto pela pesquisa de teleporte, cutucam a comida, secando o suor da testa, falando baixo, bem baixo.

“Mas afinal, onde foram parar?”

“Esse é o problema, major. O localizador deveria funcionar, mesmo que tivessem ido parar na lua. O alcance é altíssimo. Ainda estamos estudando as variáveis pra entender onde ocorreu a falha.”

“Os testes vêm dando certo há meses, capitão. Não posso dizer ao comando que cinco militares simplesmente sumiram.”

“Eles não sumiram. Eles foram parar em algum lugar. Só não sabemos onde.”

“E isso não dá na mesma, caralho?”

Na outra ponta do refeitório, Rodrigo e Thiago, auxiliares dos cientistas que nesse momento se estapeiam nos laboratórios, comem de sobremesa um mousse de chocolate. Não podem reclamar da sobremesa nova do cozinheiro, grande sensação da base nos últimos dias.

 


Este drop foi republicado na antologia Realidades Voláteis e Vertigens Radicais (@link Editora, 2019, organização de Luiz Bras), um ajuntamento de narrativas experimentais de ficção científica, com o novo título “Da temida variante mousse no cálculo científico”. A tiragem foi limitadíssima e é difícil encontrar um exemplar hoje em dia.