Faróis esfaqueando a chuva

Rógevaldo, leva essa Brahma lá fora.

Claro, dona Deva.

Róge pega pelo pescoço, o corpo embranquecido. Desvia das mesas do salão do bar e abre a porta de tela. Na varanda, o desconhecido empinando a cadeira nos pés traseiros, pernas cruzadas sobre a amurada de madeira, cigarro enfiado nos dedos do braço caído ao lado do corpo, camisa aberta e o pelo do peito pulando pro alto, calça manchada de óleo ou graxa ou barro, botas apontando pro céu molhado e pra goteirona que se atira duma telha lascada, formando um lago sonoro no chão de terra, terra ensopada até os carros mais adiante, reluzindo sob o poste, os olhinhos dum gato debaixo do carro mais próximo, o motor ainda quente.

Aqui, senhor.

Róge tira a garrafa vazia do banco e coloca a nova no lugar. Puxa o abridor do bolso e arranca a tampa.

Quem mandou trazer essa?

Dona Deva, achei que o senhor tinha pedido.

Não tem problema. Tem cigarro aí na casa?

Derby e Free. Marlboro acabou ontem, o caminhão ainda não chegou.

Traz um Derby. Salame, tem?

Opa. Já já trago.

O último cigarro da carteira de Marlboro vai devagar, amassado nos dedos, filtro afinado. A fumaça vaza no abrir de boca e no respirar vagaroso. Sai espessa, dura. Do outro lado da varanda há uma cadeira igual, vazia. Supõe que nos dias sem chuva o lugar fique mais cheio, a única biboca boa num fim de mundo como esse. É sempre um fim de mundo diferente, mas igual nisso, nas bibocas. Róge volta com o cigarro e um prato com fatias de salame cortadinhas e metade de um limão. Empurra a garrafa e o copo e faz caber tudo em cima do banco. O desconhecido tira o lacre do cigarro, abre a tampa, oferece.

Fuma?

Não, senhor.

Quantos anos, rapaz?

Dezessete.

E não fuma aqui nesse cu do mundo? Duvido. Fica desse lado de cá, longe da porta. Ela não vai te ver. Toma. Só tem duas mesas lá dentro. Ela dá conta. Senta aí.

Róge pega a cadeira, traz pro lugar indicado e senta. Acende um cigarro, dá uma tragada curta, olha pra chuva também. O desconhecido olha pra ele.

Não cansou daqui ainda?

Quem não cansa? Eu vou embora. Mas dona Deva não guenta aqui sozinha. Não consegue pagar funcionário ainda. Então vou esperar ela ajeitar as coisas e vou pra cidade, estudar.

E vai ajeitar como?

Vão abrir uma escola estadual aqui na rua. Não dá pra ver agora, mas é ali na frente, de dia dá pra ver o esqueleto. Pai de aluno, funcionário, professor, ela acha que vai movimentar aqui. Nem tanto o bar, mais a parte de mercearia mesmo.

Tomara. E o estudo? Alguma ideia já?

Medicina e direito é que não. Já viu a concorrência? Algo fácil. Tanto faz. Depois da prova eu vejo. O que eu passar na Federal. O senhor faz o quê?

E quando é essa prova?

Final do ano. Não me inscrevi pra desse, já passou. Vou ver se consigo no outro.

Consegue sim.

E o senhor, faz o quê?

Frentista. Aqui e ali.

Cadê o caminhão?

Dessa vez tô de carro. Era coisa pequena.

Transporta o quê?

O que pagarem.

E o senhor tá aqui pra recolher ou entregar?

Nenhum. De passagem. A chuva fez eu dobrar na entrada, vou passar a noite.

Tem a pousada da dona Ivana. Ela dorme cedo, mas abre qualquer hora quando tem cliente.

Vou lá depois. Agora quero relaxar um pouco.

Dá pra viver bem? De frentista?

Não vou reclamar não, viu. Dá pra pagar minhas contas. Umas geladas. Mas tem vida mais fácil. Se eu pudesse voltar e aprender outra coisa, aprendia.

O senhor é novo. Ainda dá tempo.

Tempo sempre dá. E o saco pra pegar o jeito de outra coisa? Vai ver, guri. É um parto. Se sentir que não é aquilo que tu quer fazer, pula fora logo, não acomoda a bunda em cadeira torta não.

Tranquilo. Se sair daqui já tô no lucro. Haha.

Te entendo. E tua família?

Só dona Deva. Minha mãe morreu pouco depois que eu nasci. Dona Deva me criou, era prima dela. Josefa. Nome de velha, né?

É. A gente não escolhe nome, dá nisso.

Escuta, vou voltar lá pra dentro. O senhor me dá licença. Brigado pelo cigarro.

Nada.

Róge volta duas vezes, pra levar o prato vazio e trocar a garrafa. Na terceira o homem pede pra ele chamar dona Deva, quer dar uma palavrinha. A chuva amainada, só uns respinguinhos xoxos. Dona Deva sai secando as mãos num pano de prato. O homem desempina a cadeira e desce a escadinha do bar.

Vem comigo, Deva. Só vou te dar um negócio e seguir meu rumo. Não precisa falar nada.

Ela segue o homem até o carro, o gato foge pra debaixo do carro vizinho. Ele pede pra ela esperar ao lado da porta. Vai até o porta-malas, levanta as pernas do corpo, puxa a mochila, abre, vê a cabeça dos montinhos de notas de real. Entrega a mochila pra Deva.

Róge na porta do bar, olhando Deva parada diante do carro, os faróis recuando, fazendo a volta, a carcaça preta embicando pra estrada. A chuva vai voltando, mansa, insistente.