O mastigar da terra esfomeada
Marvin, o Caolho, chegou à cidade escondido em um navio mercante. Na sua primeira noite em terra firme, depois de umas cervejas, falou a João e Moacir do seu baú e de como pagou um dos estrangeiros do porto pra ajudar a escondê-lo e de como enfiou uma faca em suas costas e torceu até o homem parar de gritar. O resto da noite passou considerando o que compraria primeiro com o que conquistou em décadas de aventuras, e recebeu com paciência as sugestões dos desconhecidos que se amontoavam ao seu redor, os rostos cada vez mais iluminados pela chance de se verem repentinamente ricos por proximidade.
Na madrugada, João e Moacir seguiram o velho cambaleante e descobriram seu abrigo numa das várias cavernas na saída da cidade, em um monte tão esburacado que era chamado de Monte do Tatu. Conversaram o dia todo sobre como atacar o velho e o que fazer com o ouro e a prata. Quando o sol desceu, voltaram ao monte, um com a faca enfiada na bota, outro com a pistola enferrujada no cinto, mas justo a caverna de Marvin, o Caolho, havia desabado. Do pirata, nunca mais se ouviu.
João passou os próximos 40 anos seguindo os passos do pai na ferraria, e os gastou sobretudo calçando os cavalos que iam e vinham. Moacir trabalhou como garçom no bar até o patrão falecer, quando a filha assumiu e o mandou embora sem a rescisão que esperava depois de uma meia vida de dedicação. Resmungando ao velho amigo no concorrente, o único outro bar da cidade, relembrou a história de Marvin, o Caolho. Nos anos seguintes àquele episódio conheceu todo tipo de trapaceiro do mar que ali atracou, mas o velho pirata foi o único a arrotar vitória; os demais simulavam a mendicância mesmo que tivessem os bolsos recheados.
E então ambos, beirando os 60, bêbados e tristonhos, decidiram revirar o intento adormecido, arrependidos por não terem pensado na alternativa que agora soava óbvia naquela noite diante da caverna. João preparou as picaretas, Moacir roubou algumas lamparinas de um fundo falso que o falecido dono do bar mantinha no depósito.
Calcularam, de olho, o ponto da curva na caverna vizinha à caverna do pirata. E começaram. Se revezaram na escavação durante dias. Trabalhavam esperançosos de que a qualquer momento a picareta encontrasse o ar rançoso do jazigo sonhado. O teto úmido acima de suas cabeças não era bom prenúncio, mas como estavam tão perto, não podiam parar. O túnel havia atingido a marca de quinze metros escavados na parede, vigas de apoio alocadas a cada dois passos, as lamparinas pelo chão, quando se abateu a desgraça.
Moacir fumava um palheiro na entrada da caverna. Um rumorejo no solo, um tremular, e então o barulho inconfundível dos dentes da terra mastigando, pedra com pedra.
João, tá me ouvindo? João?
..qui, tô aqui.
Puta que pariu, João! Desabou tudo!
…brou a viga e eu…
A voz ia e vinha. Sumiu quando outra coisa ruiu em algum canto, um pedregulho se deslocando e assentando toda uma multidão de pedras. Moacir caiu de joelhos e rezou pelo amigo, sem dúvida esmagado lá no fundo. Correu pra cidade e avisou o xerife, que voltou com dois homens da mina e algum dinamite.
Xerife, esse monte é delicado, todo esburacado. Podemos tentar explodir o chão de uma das cavernas no nível acima e quem sabe abrir um buraco pro túnel de baixo. Mas a estrutura inteira pode descer junto.
Dane-se a estrutura. Pode ser que tenha um homem vivo lá dentro, diacho.
Os dois mineiros alocaram os explosivos, ajeitaram o fio da caixa de pólvora e, escondidos atrás de uma rocha, apertaram a alavanca. O Monte dos Tatus tremeu todo por alguns segundos. Moacir ouviu de novo o barulho do mastigar terroso. Avançaram com cuidado. Viram a abertura, mas não entraram. Se Moacir é quem queria tanto salvar o amigo, ele que descesse.
Moacir foi se equilibrando nas pedras, segurando a lamparina à frente. Mas ou o cálculo tinha dado muito errado, ou muito certo. O túnel que adentrou era o próprio túnel do Caolho. Viu uma abertura na parede e algumas pedras amontoadas diante dela. Então João chegou a terminar o serviço, completou o túnel, e o Monte deu o troco. Teria o amigo pulado e sobrevivido? Ou estaria amassado ali, tão próximo da salvação? Continuou pela caverna pra descobrir.
Não deu nem dez passos e chegou ao fundo. No chão um esqueleto, ao lado um baú. Marvin, o Caolho, e seu tesouro. Nada de João. Moacir nem se deu o trabalho de abrir o baú pra confirmar a suspeita, no íntimo, de que o velho pirata havia contado uma grande mentira, uma piada pra afiar seus velhos nervos, à qual os dois se agarravam como se tentassem agarrar a própria juventude, evaporada.
Se tinha algo que Moacir podia fazer pelo amigo, era não deixar que morresse em erro. Que morresse em dúvida, pelo menos. Saiu e não olhou pra trás.