Patrão

Tem gente com o rei na barriga mesmo.

Marcelo, tiozão aí do lado, sai de casa com a panca toda, vai correr à noite de tenizinho novo, iPod no ouvido, camiseta da Nike, short da Adidas. A mansão parece um forte, cerca elétrica, câmera, interfone. Chega com a janela da caminhonete aberta, jazz tocando só pra tripudiar o que a gente ouve, braço pra fora, relójão dourado, Rayban na cara, gritando no celular gigante. A mulher sai cheia dos penduricalhos no pescoço, nos pulsos, nos dedos. Cabelo levantado com laquê. Dentro do carrão, ambiente frio e esterilizado que nada tem dessa sujeira da rua. Academia em casa, coxa malhada, peitão siliconado. Coisa de novela, sabe. Ralar de verdade nem passa pela cabeça desse povo.

Tô numa maré fraca, oito meses parado depois que caí da escada, os clientes fiéis acharam outros pra fazer o serviço. Nego sem plano de saúde é isso, meses na fila do SUS pruma maldita cirurgia, e até lá chão de hospital. Tento avisar que voltei mas crédito no celular que é bom nada. Espalho cartazes nos bairros humildes, pobre é que paga serviço, rico enrola, chora por causa de dez reais enquanto o filho brinca de aviãozinho com nota de cem. Aí cê já na merda, dinheiro nem pra comida direito, suando um aluguel atrasado na expectativa do despejo, vai e puxa um fio da mansão do Batman e o cara vem e tora.

Esses dias passou correndo na frente do bar e inventei de mexer. Claro que me ignorou como todo bom rico faz na frente do pobre, finge que não tem diferença. Não culpo, sei que o que fiz não foi certo. Mas vá lá, não sou vagabundo. Tô mal das pernas. É passageiro. Agorinha volto ao ritmo.

O patrãozão ficou incomodado com a provocação e veio bater aqui com folhetinho de curso de eletricista. Como se eu já não soubesse tudo que tem pra saber. Como se além disso eu não soubesse pintar, cuidar de encanamento e outros quebra-galhos. Não, ele quer ver o vizinho miserável com diplominha na parede. Ainda me diz que vai pagar, pra esfregar na cara mesmo que tem sobrando. Não quero esmola, meu chapa, muito menos tua pena. Só preciso de uma folga pra colocar as coisas em ordem, não tenho essa poupança gorda que tu tem.

A vida não tá fácil assim pra todo mundo.

 


“Patrão” e seu complemento “Folgado” são minicontos de contrastes, visões divergentes e conflitantes. Confira o outro lado clicando AQUI