Salário algum justifica certos infortúnios

Doizirmo ajeitou o quepe, conferiu os botões do colete, o brilho na ponta dos sapatos, os dedos das luvas, o vinco da calça. O casal entrou, o marido segurando três malas como podia, as crianças no encalço. Doizirmo pegou um dos carrinhos, ajeitou as malas nele e pediu a um funcionário que acompanhasse a família até a recepção no fim do saguão e depois ao quarto.

O grupo de homens de terno, que conversava em um dos ambientes com sofás de couro, foi servido por uma das garçonetes do restaurante. Doizirmo percebeu gotas de refrigerante no chão. Apertou o botão do comunicador no pulso e pediu a limpeza do local. Em segundos um faxineiro cruzou o saguão, passou um pano molhado e desapareceu.

Três garotas magérrimas e altas desceram do elevador, cambaleando, e perguntaram ao vendedor dos pacotes turísticos onde poderiam beber uns drinks e achar as garotas mais bonitas da cidade. Quando as risadas se tornaram altas demais, Doizirmo foi à parede da recepção, puxou o interfone, ligou pra mesa do balcão, pediu ao rapaz que as levasse para fora e as colocasse num táxi imediatamente. O rapaz obedeceu, sem deixar de responder às perguntas com o entusiasmo protocolar.

Na calmaria, Doizirmo vasculhou o quadrante nos mínimos detalhes e imbuiu treze faxineiros de pequenas limpezas, a equipe elétrica de consertar um soquete de lâmpada pifado, a equipe de reparos de uma mão de tinta num pedaço de rodapé sujo por alguma criança e a gerência do hotel de rever a programação musical depois de ouvir, de duas senhoras em ocasiões diferentes naquela manhã, que se sentiam indo a um enterro com aquela coisa melancólica nos ouvidos.

Diante da intrincada assepsia do saguão, sua responsabilidade, Doizirmo sentia uma satisfação que resultaria, sem dúvida, em um sorriso, caso não fosse estritamente contra a sua política pessoal de conduta sorrir ou demonstrar emoções enquanto funcionário do mais prestigioso hotel da cidade. O que não se sustenta, é bastante óbvio, quando os vidros da entrada explodem com um estrondo, o grande lustre cai sobre um casal de velhinhos e a fumaça e os estilhaços dos móveis tomam conta do lugar.

A comitiva kavlani entra montada em pequenos animais roliços. Desmontam e seguram arcos e flechas e espadas negras deformadas. O kavlani mais alto entra logo atrás, pede à recepcionista para identificar o quarto em que se encontra o conde Fou. Ela não entende. Ele a ergue pelo pescoço, desce o dedo do peito até a virilha e o corpo da mulher se abre, sangue e órgãos escorrendo sobre a bancada. Os outros recepcionistas gritam e correm pra saleta atrás da recepção. Um kavlani joga algo lá dentro que explode e acaba com a gritaria.

O líder dá a volta e começa a mexer no teclado. Seu rosto verde em camadas de carne viva demora a reconhecer algo. Fala em grunhidos pra comitiva. Três deles entram no elevador e sobem ao décimo-primeiro andar. Segundos depois descem com um homem velho, as mãos presas nas costas. Doizirmo, caído sob uma pilastra desde a explosão inicial, sem sentir a perna esquerda, observa. Os sobreviventes que gritam ou reclamam ou se movem são alvejados por flechas.

O homem claramente não sabe o que está acontecendo. O kavlani o interroga, aperta repetidas vezes sua nuca, lhe dá socos no rosto e no corpo. Incapaz de conseguir uma resposta que faça sentido, ordena a um dos guardas passar a lâmina negra no pescoço do homem. A cabeça tomba. Alguns gritos repreendidos. O kavlani olha ao redor, dá uma ordem e sai do hotel com a comitiva.

Passado o susto, os funcionários ilesos se reúnem para ajudar Doizirmo. Ele grita ao ser puxado quando erguem a pilastra. Pedem que fique parado esperando a ambulância. Doizirmo diz que está bem e continuam auxiliando os demais feridos. Quando se afastam, ele manca com a perna boa até a saída. No estacionamento, nos fundos do hotel, segue até seu carro. Senta no banco do motorista. Aperta a própria nuca e sente a pele bege voltar às camadas de verde úmido.

Ele estranha não ouvir nenhum barulho vindo do porta-malas enquanto o carro anda. Para numa rua residencial a algumas quadras do hotel, tira o uniforme e o joga pela janela. Aperta o botão no painel e o porta-malas se abre. Doizirmo sai devagar, de cueca e regata, e olha ao redor. O conde Fou acelera, olhando pelo retrovisor o gerente começar a vestir as roupas da calçada.

Agora Fou sabe, sem sombra de dúvida, que a reunião diplomática com os humanos no hotel era um embuste. Precisa desaparecer, recorrer aos contatos feitos ao longo de uma vida de espionagem para encontrar refúgio no mundo humano e se manter vivo. Não será fácil. Ainda mais com uma perna esmigalhada. Benditos humanos e seus câmbios automáticos, pensa.