Um álbum com seis sobrenomes

Olha, Mariana. É Mariana, né?

Marina, dona Inês.

Marina, isso. Então. Acho que foi o contrário. Na verdade eu amei foi demais. Só que vem a vida, sabe, fazendo aquelas curvas fechadas. Também ajuda que nos antigamentes, casar era regra. Era o normal a se fazer se você se enrabichava com homem. Não era essa facilidade que é hoje não.

Será que a senhora pode me contar como foi com cada um? Não precisa entrar em detalhes se a senhora não quiser. Mas um pouco de cada.

Posso. A memória é de ferro, minha filha. Eu não esqueço, ainda mais essas coisas. Alzheimer aqui nem com reza braba. Agora Parkinson. Tá vendo, essa mão… Desculpa ter derrubado café na sua saia.

Não foi nada, dona Inês. Um sabão em casa e já já sai.

Tá bem. Então deixa eu começar. Sebastião foi o primeiro. Ele morava na minha rua, na Limeira. Todo dia quando o sol baixava ele ia pra esquina me esperar chegar da escola. Me dava o braço, falava que eu tava linda e me deixava em casa. E antes mesmo da gente dar o primeiro beijo, antes de conhecer o homem direito, ele pediu minha mão. Papai só exigiu que eu terminasse a escola antes. Eu tinha 16 anos. Fomos morar nas beiradas de Intudaial, a ideia de Tião era ganhar aos poucos na farmácia em que era gerente e depois a gente se mudava mais pro centro, onde as ruas eram largas e as casas maiores. Ele morreu baleado num assalto na farmácia, e eu acabei grávida da Rafa, com 7 meses.

A Rafa nem falava ainda quando casei com Osvaldo. Ele era o pediatra que cuidava dela desde o nascimento. A gente viveu na casa que Tião comprou até a Rafa completar três anos. Aí apareceu a primeira esposa do Osvaldo, de Minas Gerais, e ela ficou esperando dentro do carro com três crianças amontoadas na janela. Ele não se despediu de mim direito, com vergonha, mas a Rafa ele abraçou e beijou tanto que eu achei que fosse carregar junto. Humberto foi o terceiro. Conheci ele quando reformava o telhado da minha casa. Era o irmão do empreiteiro, e vinha numa caminhonetinha trazer os materiais sempre que precisavam. Eu passava um café, ele gostava de conversar, e aí depois que o telhado ficou pronto ele continuou vindo. O que aconteceu com o Humberto eu não soube por alguns dias. Mas a família dele, que não gostava de mim, veio finalmente me falar que a polícia tinha achado ele no carro na beira da estrada. Gelado que só. Os médicos disseram que foi o coração.

Carlos era motorista do ônibus que eu pegava todo dia pro centro, pra trabalhar como recepcionista num consultório de dentista. Ele se engraçava todo, falava de como o primeiro casamento não tinha dado certo, eu dava trela. O horário não batia e a gente namorou só nos finais de semana até o casório. Ele veio morar comigo e trouxe o Leandrinho, filho dele, uma peste. Não durou um ano. Eu trabalhava dobrado na casa e Carlos, quando assentou, mergulhou na bebida. Eu não tinha papa na língua depois de tudo pelo que passei e mandei ele com Leandrinho embora depois de uma noite em que ameaçou um tapa. Só ameaçou, filha, que eu nunca apanhei na vida.

Aí veio o Josias. O Josias estudou comigo no colégio e a gente se reencontrou um dia no clube militar. A Rafa queria tanto nadar naquela piscina que levei ela e fiquei numa mesa de guarda-sol na beirada, bebendo uma caipirinha. Ele me reconheceu, sentou e começou a conversar. Tinha virado representante comercial e passava a maior parte do tempo na estrada. Se sentia solitário demais e quando voltava pra casa não achava repouso. Foram dezessete anos de casamento, e com ele eu tive dois filhos homens, o Gael e o Toni. A Rafa me ajudou a criar, ela já tava mocinha. O Josias perdeu a vida numa batida na serra, voltando pra casa. Eu passei um dia inteiro andando pela mata perto do acidente, achava que ouvia a voz dele, isso mesmo a polícia dizendo que já tinha levado o corpo. Eu achava que tava ficando louca, louca de pedra.

O que ele dizia pra senhora?

Ah, filha. Eu não sei. Eu devo ter imaginado tudo. Só sei que era a voz dele. Depois fiquei cinco anos sozinha, me acostumei. Quem apareceu, e foi insistente pra vencer essa contrariedade, foi o Wendel. Wendel fabricava leite numa fazenda na beira do lago em Tuvestal, lá pra perto da estrada, sabe?, e vinha com a carreta cheia das garrafas de leite fresco. Ele sempre alegre, dando um bom dia caprichado enquanto eu cuidava do jardim, e bateu martelo até o dia em que o chamei pra tomar um café da manhã com a gente. Foi ficando. Aquela presença alegre, que nunca incomodava, sabe. Nos mudamos pra fazenda dele, os guris ajudavam no trabalho, Rafa já na faculdade.

Foi assim que a senhora veio morar aqui?

Isso. A morte de Wendel só não foi pior que a de Josias. Dessa eu já sabia, rezando na porta quando Toni apareceu correndo, esbaforido. Tavam na rota do leite e Wendel soltou a carroça do cavalo pra arrumar a madeira do guidão. O céu limpo, limpo, e contrariando tudo um relâmpago cruzou seco e ribombou e o cavalo no instinto ergueu o casco e deu-lhe na têmpora. Caiu morto já, a cabeça afundada. E aqui fiquei, filha, decidida a não levar mais ninguém pra tumba.

Nossa, que história, dona Inês.

Não é? Agora que Toni e Gael tão casados e visitam pouco, eu lembro bastante dos meus homens, tenho tempo pra lembrar. Você disse que vai publicar isso onde?

No jornal da escola. É pra gente entrevistar as pessoas da cidade.

Ah, é mesmo. Depois me traz uma cópia. Quer mais um pedaço de bolo?