Uma montanha que se ergue do vale em dia de chuva

Quando ele se ajoelhou diante de seu senhor, levou a cabeça ao chão e só a ergueu quando ouviu

Matanari.

Ergueu o torso, pousou as mãos nas pernas e começou a falar de sua viagem ao feudo vizinho. Um suppa, ou shinobi, era capaz de se mover pelas sombras e se fundir ao ambiente, respirar como a brisa e pisar como o lobo, passando despercebido. No castelo, se esgueirou até o salão principal, onde se aninhou entre as vigas do teto, acima do forro. O daimyō que espionava, Uramashi, não possuía os laços de sangue que o precediam em títulos e terras e favores, e portanto não possuía um suppa a seu serviço. Fosse o caso, Matanari não chegaria ali, ao menos não com aquela facilidade, e não poderia escutar as conversas que ouviu durante todo o dia.

Ainda que um senhor desprestigiado pelos demais, cercado em seu feudo diminuto por feudos robustos e preparados para a guerra, Uramashi foi capaz de reunir aqueles poucos que ainda lhe deviam a honradez atravessada de uma sucessão às pressas. O antigo senhor do feudo foi arrancado da vida durante o sono por algo que só podiam supor ser o coração fraco, algumas primaveras atrás; sendo Uramashi seu prisioneiro desde criança, filho de um inimigo tornado aliado, cuja família acabou arruinada pelas guerras entre os clãs, e sendo a única criança próxima do daimyō pelos doze anos que ali viveu, se tornou, para todos os efeitos, um filho postiço. Naquele momento, era o único capaz de manter a linhagem sucessória de um senhor que não produziu herdeiros.

Depois de suprimir as revoltas internas, lidar com a debandada dos vassalos que não legitimaram a decisão e comprometer a maior parte de suas riquezas em prestações aos senhores que o cercavam e que poderiam amassá-lo como um mosquito, Uramashi começava a triunfar, administrando um feudo em harmonia com uma divisão militar cada vez mais afiada.

Era por isso, pelas suspeitas que o senhor de Matanari nutria de que aquele homem pudesse se tornar um incômodo ou um declarado inimigo naquele intricado jogo de afiliações políticas, que ele foi enviado ali. Para avaliar. Pesar. Calcular. Matanari observou Uramashi tratar com seus súditos das pequenas desavenças do feudo com uma clareza e uma segurança que muito o impressionaram.

Um caso específico lhe chamou a atenção. Um garoto, de não mais de 10 anos, com a boca cortada e o corpo todo lanhado, falou de sua bem-sucedida feita de vingança. Explicou, em detalhes, a desonra da irmã por um dos patrulheiros, e de como, por dias a fio, seguiu a ronda esperando o momento em que o homem se separasse do grupo. E assim o fez, cortando sua garganta e deixando-o para ser encontrado pelos companheiros em sua própria merda. O garoto foi caçado e capturado.

Uramashi ficou impressionado. Perguntou se ele mesmo tinha feito o serviço, e que arma havia usado. Por fim disse ao chefe dos patrulheiros que reforçasse a orientação aos homens de que as mulheres do feudo não eram mercadoria, e que se não se comportassem ele mesmo teria que castrá-los feito cachorros. E ofereceu ao garoto a posição de encarregado de sua montaria. Preparado para morrer, incapaz de compreender aquele repentino gesto de compaixão, o garoto se desfez em lágrimas. Uramashi então disse a ele algo que ainda ressoava claramente na cabeça de Matanari: “O caule da flor é um caule forte, mas a flor mesmo assim despenca. Resta ao caule a força.”

Ao cabo do dia, enquanto regressava da missão, Matanari considerava como aquele daimyō ilegítimo havia se tornado um senhor mais justo e respeitável que seu próprio senhor, herdeiro dos laços de sangue, títulos, terras e favores que lhe eram costumeiros, mas mesquinho, covarde e assustadiço como um potro.

Matanari contou aquilo que viu sem reservas, como Uramashi crescia na posição que não lhe pertencia, e viu nos olhos do seu senhor a faísca antes mesmo que desse qualquer ordem. Em poucos dias, ele seria convocado a assassinar Uramashi em seu sono, como havia assassinado seu antecessor, e o faria com a excelência com que cumpriria qualquer de suas ordens. Mas não podia deixar de imaginar como seria servir a um senhor que realmente admirasse, que lhe causasse a impressão que Uramashi havia lhe causado em apenas algumas horas, a de uma montanha que se ergue do vale em dia de chuva.

Não importava. Havia dois tipos de homens, ele aprendeu, nas terras da província de Iga, ouvindo as palavras de seu pai, um suppa experiente que encaminhou os treze filhos em sua profissão das sombras: os que governavam e os que obedeciam. Nem sempre os homens corretos exerciam a função que lhes reservava o destino, mas nem por isso deixariam de exercê-la. Os suppas obedeciam, e isso bastava.