A formidável moldura do indizível
Um sonho tem me atormentado nos últimos tempos. Sinto uma repulsa inexplicável pelo conceito e não consigo parar de confrontá-lo no subconsciente. Começa com a imagem de um homem sentado diante do computador em um escritório escuro, escrevendo e escrevendo. Ele acorda, come, senta e começa. Vira e mexe lê um livro. Assiste algo na mesma tela quando para pra almoçar, normalmente coisa rápida de fazer e com uma cara não muito boa. Lê e assiste mais coisas à noite quando não sai, e nunca sai. Então dorme, convoluto na cama, pra reiniciar o mesmo dia.
Sempre que acordo, rodeada por não sei quais serviçais zorianas, sinto um amargo na boca que parece o exato amargo na boca desse homem. Deixo o problema de alimentar e expulsar as convidadas nas mãos de Kef, a inteligência artificial da casa. Não é sempre que consigo todas as horas de sono de que preciso; cansei de acordar de madrugada com o alarme porque, bem, que hora melhor pra invadirem o quadrante ou assaltarem a sede do conglomerado ou sequestrarem a presidente eleita?
Num dia bom eu consigo escovar os dentes sem pressa e ouvir as notícias no chip auricular enquanto corro ao redor do lago luminoso da cúpula comercial, poucas dezenas de níveis abaixo da minha residência no distrito 8. Num bom dia a patrulha aérea de rotina não é interrompida por um bandido ou outro que descobriu um jeito estapafúrdio de arranjar créditos, ou uma revolta que precisa ser suprimida antes que a imprensa tome a dianteira e defina a versão mais rentável da história.
Os dias bons são cada vez mais incomuns.
O engraçado é que não lembro de outros sonhos antes desse. Pergunto aos demais patrulheiros se lembram do que sonharam, e todos me olham atravessado, como se sonhar fosse algo que nem tivessem considerado antes da pergunta. Esse tipo de reação, um aparente choque, tem acontecido com cada vez mais frequência. Chega a ocorrer com Kef, quando pergunto à IA o que ela pode me dizer da vida em Tauná-Set, o planetoide mais afastado do quadrante. Afinal, eu já visitei todos os outros, em missão ou nas férias. Um bug no sistema de comunicação, penso, e pesquiso por conta própria. Não acho nada na busca dos sintetizadores, Tauná-Set nem parece existir. No dia seguinte, a principal notícia do dia vem de lá, alguma explosão ainda não identificada.
Percebo que quanto mais essas estranhezas ocorrem, mais forte é o sonho. O homem, sentado em sua cadeira, gira por intervalos cada vez maiores com as mãos cruzadas no colo. E então finalmente parece ter um estalo e volta a digitar no computador. Nos dias mais agitados, quando o trabalho me consome e não tenho tempo pra considerar qualquer outra coisa, o sonho é breve, enevoado. A impressão é de que são mais que sonhos. Talvez algum mecanismo de proteção a que minha mente venha recorrendo pra impedir alguma deterioração, ou então…
Meu filho. Algum trauma do meu
filho?
Morto.
Morto?
Que engraçado.
Eu podia jurar que não tinha filho.