A morte é um sanfoneiro, somos o baile

  • 23 de julho de 2015
  • Categoria: Fantasia

Adiante, muito adiante, o sanfoneiro toca.

Seguimos, os pés na sinfonia tonitruante de levantar poeira e pintar bordas de vestidos, pintar a terra de machucados. Num rodeio ou outro vislumbramos o caminho atrás mastigado pelo negrume no rastro do baile. A música o impede de engolir o chão por onde vamos, e seguimos a música treinados, ignorando o céu da boca do fim escalando nossas passadas.

As teclas da sanfona, enferrujadas e lavadas de sangue seco, ecoam os batuques dos cotocos de ossos. A caveira assovia pelos buracos da mandíbula.

Minha parceira me guia, braços finos ditando o ritmo, cintura dura desprovida de carinho, engordada tantas vezes e todos eles, filhos da miséria, engolidos. Me concentro pra não deixar o silêncio vencer a música. O cansaço não é tolerado. O fim não cansa.

Por vezes tenho a impressão de que o negrume é uma orelha sedenta. As notas bombeiam o sangue do corpo inexistente e, de alguma forma, o enchem de vida. Ele cresce embora eu não veja diferença, não há limite ou alcance que a vista divise, não há saciedade em estoque, não há esperança; também não há indício de que a estrada à frente vá acabar.

O medo motiva. Mais por minha parceira do que por mim. É o que nos coloca limites, o amor dos outros. Não me perdoaria, nem no esquecimento.

Não há letra que caiba na música, nada cabe. Ela ecoa sem sentido, ou com todos os sentidos, prolongada, um séquito de formigas na escuridão do poço sonhando com um facho de luz para mergulhar na bocarra de pedra e bordar tudo de cor e vida.

Mas não há luz. Só há música.

  • Loreci Demeneghi

    Impressionante!