A Terra foi mastigada e sobrevivemos [#164]

Se a saúde do planeta for calculada pela quantidade de estranhezas recentes, ele está na UTI, em coma, sustentado por máquinas. A enfermeira não sai mais do lado e já viu que não tem volta, por isso guardou o anel de ouro e a corrente de prata no bolso, que morto não reclama.

O que aconteceu foi o seguinte: certo dia a terra abriu. No meio das cidades. Abriu como as bocas abissais de Terrazillas adormecidos, despertando com fome. Prédios, casas, shoppings, veículos e pessoas; tudo foi abocanhado, mastigado, ruminado e cuspido de volta. O que sobrou depois da comilança foi uma coleção de destroços-cassinos; miríades de ruínas inexploradas, cavernas e túneis e reentrâncias e lagoas entulhadas de espólios, esqueletos urbanos lotados de prêmios à espera de aventureiros dispostos a escavá-los, arqueólogos exploradores, caçadores de riquezas e memórias.

Não se sabe que ira divina ou natural provocou tamanha fúria, mas somente cidades e metrópoles foram afetadas. Pequenas vilas e fazendas e barracas saíram ilesas, e os que aravam a terra ou faziam camping foram poupados. O mundo ficou de herança para os caipiras e os hippies; amantes da natureza, da vida simples, distante da fumaça e do stress, do barulho e da violência que assolava os grandes contingentes humanos. Uma espécie de dilúvio, uma reciclagem pra separar o joio do trigo, pra dar à humanidade outra chance de não estragar tudo.

Mas é só questão de tempo, já afirmaram os novos pensadores das faculdades criadas no primeiro século pós-cataclismo. É questão de tempo até que os arqueólogos recuperem uma quantidade razoável de conhecimento e tecnologia das ruínas mastigadas, até que se admirem com sua própria capacidade e se disponham a alcançá-la outra vez, ou pior, ultrapassá-la, até que a ambição humana se instale e se espelhe nos antepassados condenados para recriar as zonas de conforto e caos que tanto admiravam, ilhas paradisíacas de arranha-céus e arquitetura de vanguarda, de burocracia e avanços científicos.

Alguns afirmarão que é a tendência humana, outros que é a simples influência dos restos desencavados, pilhagem servida para colheita. A dúvida que persiste, se de fato o cataclismo foi uma renovação planetária, uma exigência divina, uma lavagem estomacal da natureza, é por que a Terra não levou embora os destroços, não os engoliu de vez e deixou escorrer até o núcleo fervente, onde derreteriam. Por que deixar as evidências dos erros pra trás? Ao que os novos profetas respondem: é tudo previsto. Se errarmos novamente, se lutarmos contra nosso habitat, descobriremos novas formas de derrota. Somos vírus infestando um organismo vivo, e se não formos mansos e delicados, anti-corpos despertarão e nos varrerão pra debaixo do tapete. Esta analogia, extremamente bem colocada, é a epígrafe da Nova Bíblia da Igreja da Salvação, para a qual este prefácio foi escrito.