A vida no Colégio Candeias é um inferno

Cara Diretora,

Eu, bem como meus colegas, estamos francamente horrorizados com a conduta da professora Ester, da disciplina de Feitiços. Já fizemos reclamações informais antes, mas resolvemos formalizar aqui nesta carta as nossas insatisfações e informar a senhora de alguns desdobramentos que julgamos interessantes e que precisam da sua ciência e aval.

Não bastassem os cutucões ao Ratão (Everardo Gomes), que todos a essa altura já sabem ser filho da sua vizinha e inimiga mortal (algo com relação a cachorros e plantas), as atitudes em sala de aula da professora têm se mostrado reprováveis e, o que é pior, ofensivas e até perigosas.

Talvez o exemplo mais flagrante tenha ocorrido no dia 11.04, quando aprendemos a fazer os rabos para curvas fechadas das nossas vassouras de voo. Aprendemos que é necessário alimentar uma iguana por cinco dias com favas embebidas no xarope de raízes de cicatrização acelerada, para só então cortar o seu rabo, ingrediente essencial do revestimento a ser aplicado na vassoura. Mas a professora Ester não só resolveu não ministrar à sua iguana o xarope como disse que a escola estava formando apenas jovens leite com pera (palavras dela), e que nos velhos dias a humanidade lidava com a natureza sem essa frescura toda. Então ela procedeu à cortar o rabo da iguana, que se debateu na mesa até que ela cortasse sua cabeça, abrisse a barriga, retirasse todas as entranhas e instasse os alunos a acender uma fogueira no pátio, onde ela assaria a iguana pra podermos provar o que é comida de verdade.

Sabemos que ela foi advertida e que a escola recebeu uma notificação do Ministério de Maus-Tratos aos Animais em Utilização Para Fins Mágicos, mas isso não parece ter mudado muito a sua postura. Detalhamos a seguir alguns acontecimentos pós-iguana:

No dia 27.04, durante uma demonstração das utilizações do fogo fátuo, ela queimou todos os pelinhos do braço e pediu que a gente desse um jeito de acabar com aquele cheiro insuportável. Ela não disse que a substância queimada por fogo fátuo se torna tóxica e metade da sala desmaiou antes que o inspetor aparecesse e conjurasse um feitiço extintor, que ainda não tínhamos aprendido.

No dia 28.04, o dia seguinte, quando dois alunos não vieram porque ao desmaiar se machucaram nas quinas das mesas, a professora Ester contextualizou a nossa história para um feitiço de linguagem, e frisou que durante a Grande Guerra da Fronteira os bolivianos foram traiçoeiros, e que não deveríamos nunca confiar neles, mesmo hoje. A mãe da Tinha (Renata Esperanza Tonus) é boliviana. Ela pediu à professora para retirar o que disse, explicando que sua mãe era inclusive funcionária do Ministério brasileiro. A professora não só reforçou a implicação como fez um feitiço de mudez e imobilidade na aluna pelo resto da aula.

No dia 01.05, tradicional feriado quando muitos estudantes voltam para suas casas, ela fez um feitiço de evocação e trouxe às suas cadeiras todos aqueles que estavam com suas famílias, passeando, comendo ou até dormindo depois do almoço, afirmando que apenas os feriados do mundo mágico é que deveriam ser respeitados no colégio. Vale destacar que o Cabeça (Bruno Gomide) estava tomando banho, e assistiu a aula enrolado numa toalha tirando o sabão dos olhos.

No dia 05.05, ela achou um piolho na sua cabeça e o comeu.

No dia 06.05 ela achou outro piolho e disse que quem não acertasse as respostas da prova oral teria que comer o piolho. Felizmente, todos acertaram.

No dia 10.05, anteontem, a professora Ester trouxe de sua casa uma lista de números. Ela os escreveu no quadro. Os números variavam de 50 a 70, com alguns chegando às casas decimais de 80 e 90. Apenas um destoava, menor que todos os outros, 19. Então ela disse que nos últimos meses tinha recolhido pertences e cabelos nossos e feito um proibido feitiço de clarividência para saber com que idade cada um de nós iria morrer. Ficamos horrorizados, sabendo que em poucos anos um de nós morreria, e mesmo insistentemente questionada, ela disse que não revelaria de quem era o número. Quando começaram as lágrimas, ela voltou atrás e disse que era apenas uma brincadeira, mas apontou o Ratão e disse para ele cuidar com o que comia. O Ratão entrou em desespero e passamos o resto da aula tentando acalmá-lo.

É por esses episódios, talvez nem todos do seu conhecimento, diretora, que pedimos o afastamento da professora Ester, e que alguma substituta seja encontrado para a disciplina. Já ficou claro, pensamos, que ela é incapaz de ministrar aulas de forma segura, e que nosso aprendizado está sendo prejudicado.

Também aproveitamos para informá-la que nossa sala está iniciando as atividades de um grêmio estudantil, e que pretendemos convidar os demais alunos dos diferentes anos do colégio para integrá-lo e discutir problemas que julgarmos dignos de atenção, criando assim uma ponte de comunicação com a direção que formalize e integre nossos interesses. Espero que possamos construir isso juntos, já que as leis do Ministério da Educação são claras no tocante à permissão da criação de grêmios caso os estudantes assim desejem.

Aviso de antemão que o assunto mais premente, após a resolução do caso com a professora Ester, é a reativação das Olimpíadas. Estamos abertos para o diálogo, e esperamos contar com o apoio incondicional da senhora nessa busca para melhorar a qualidade da nossa escola e nossa vida escolar.

Atenciosamente,

Eduarda Tavares Souza e alunos do 2º ano B

  • Auryo Jotha

    Genial! A parte dos números NOSSA! ~palmas, palmas, palmas~
    Essa professora é mestra no bully.

  • Silvia Cobelo

    Adorei sua prosa!! Muito bom esse mini-conto – posso chamar a obra assim? ;) Beijos, Silvia Cobelo

    • http://flashfiction.com.br Santiago Santos

      Oi, Silvia! Brigado. E não tem regra, eu chamo de minicontos ou drops. Flash fiction é o termo mais comum em inglês, mas já usaram short short stories e variantes.