Alcoólicos Anônimos

“Então, gente. Eu tô vindo aqui há dias, mas só agora me senti na liberdade de falar. Quero agradecer a todos pelas palavras. As histórias de superação de vocês têm me ajudado a superar a minha, podem ter certeza disso.” Encaro os quarenta e poucos pares de olhos que me fulminam no palanque.

“Não consigo lembrar exatamente quando comecei a beber. Na adolescência era uma coisa social, entre amigos, nas quais vez ou outra passei da conta, vomitei, enfrentei ressacas medonhas. Mas lembro de ser mais contida que outras amigas, que entraram em coma alcoólico, tiveram episódios de amnésia. Uma delas até capotou o carro. Por sorte nada sério. Mas foi suficiente pra eu parar por um tempo. Só voltei a beber no fim da faculdade.

“Foi o stress, talvez. De terminar a monografia, da rotina tediosa do estágio no laboratório, da pressão de conseguir um bom emprego sem currículo, de me culpar por não dar brechas pros meninos a fim de estudar mais e mais. Eu ainda era virgem no último ano, então vocês podem entender minha apreensão.” Alguns sorrisinhos previsíveis.

“Uma amiga tinha acabado de comprar um apê e resolveu fazer um chá de casa nova que virou uma festa que virou uma grande putaria, com gente de fora chegando a noite toda. No dia seguinte, acordei no sofá pelada, inchada e suja. A casa tava aberta, muitos móveis quebrados e os presentes que levamos todos roubados. Demorei alguns meses pra descobrir, achando que as dores de cabeça e cólicas eram resultado do stress. Não eram. Eu tava grávida.

“Resolvi não contar pros meus pais. O que eles pensariam? Inventei uma desculpa pra não ver eles do momento que a barriga ficou visível até depois do parto. Aborto foi sempre uma opção, claro, mas uma que nunca aceitei. Eventualmente conversei com as meninas daquela noite, as que eu conhecia. Nem mesmo a dona do apartamento sabia quem eram metade das pessoas lá, e ela também apagou a certa altura da festa. Uma legião de estranhos, e qualquer um podia ser o pai. Depois que a Gabriela nasceu, pedi o teste de paternidade pros poucos conhecidos da lista que fizemos, e todos primeiro esbravejaram perguntando como eu achava que seriam capazes de fazer algo abominável como o que eu insinuava, mas acabaram concordando quando citei testemunhas da presença deles e o envolvimento da polícia. Nenhum resultado bateu.” Três pares de olhos, prum lado e pro outro. Mulheres, mais sensíveis ao assunto.

“Passei muito tempo pensando como poderia descobrir quem fez isso. Não havia câmeras, os vizinhos não falaram nada que desse pra aproveitar, o porteiro daquela noite não quis se envolver. Os que ficaram até tarde disseram que rolou muita coisa mas o que viram foi, ou pareceu ser, consensual. Não havia outro caminho a seguir. Que é mais ou menos o momento em que nos rendemos a coisas absurdas, certo?” Um pigarro trava na minha garganta. Tomo um gole de água. Quarenta e poucos pares de olhos hipnotizados.

“Talvez muitos de vocês não acreditem num raro talento chamado psicometria. Eu mesma não acreditava. Mas é possível que pessoas com dons aflorados ou treinados enxerguem nas vibrações de um objeto o seu histórico de interações. Policiais já se utilizaram dos dons desses ditos paranormais para auxiliar em investigações sem muitas pistas, com sucesso em algumas delas. Consegui, depois de muita pesquisa, encontrar uma psicômetra na Paraíba. Viajei até sua cidade e levei as roupas que usei naquela noite, ainda guardadas. Não necessariamente a pessoa que me despiu foi a pessoa que abusou de mim, mas imaginei que fosse um bom ponto de partida. Ela identificou o homem, que deixou sua assinatura energética registrada na calça, na blusa, na calcinha, no sutiã.” Quarenta e poucos pares de olhos tremelicando.

“É claro que ela não pôde me dizer seu RG e CPF, mas o descreveu. Uma característica marcante se sobressaía, a descendência oriental, ainda que bastante miscigenada, e seria mais fácil afunilar minha investigação dessa forma. Como o apartamento era próximo do campus e como a esmagadora maioria dos presentes possuía mais ou menos a nossa idade, a probabilidade de ser um aluno era alta. As buscas nos arquivos da faculdade foram complicadas, e uma justificativa convincente foi necessária pra convencer a administração da necessidade do meu acesso. É claro que não citei a psicômetra, ou poderiam supor que eu partia de uma investigação fantasiosa, o que não era o caso.” A expectativa nesses olhos é tamanha que se eu der um grito ou fizer um movimento brusco creio que metade das pessoas cai da cadeira.

“Depois de rastrear as centenas de descendentes orientais que foram alunos ativos na época, comecei a investigar cada um deles. A grande maioria não batia com a altura e o peso aproximados, o que reduziu a lista a menos de vinte suspeitos. É claro que recorri novamente à bebida nos anos em que descobri seus paradeiros e passados, e não raras foram as vezes em que me intoxiquei até o esquecimento e acordei ao lado de desconhecidos. Mas a essa altura eu já tinha ligado as trompas e sabia que bebia pra esquecer o fato de que meus pais criavam Gabriela e não me permitiam chegar perto dela. Como precisava deles pra me dedicar à minha obsessão, aceitei a condição até que pudesse chegar ao fim da história. O que está bem perto de acontecer.”

Quarenta e poucos pares de olhos cravados em mim. Apenas um, mais puxado, me encarando com legítimo pavor.

“Obrigada pelo apoio de vocês.”

  • Rodolfo Salles

    Que incrível, eu fiquei tipo a plateia, mega concentrado e empolgado pra saber o desfecho…. e que desfecho! Rsrs. Parabéns! Descobri o site pelo Três Páginas, e já me apaixonei :)

    • http://flashfiction.com.br Santiago Santos

      Bom saber, Rodolfo! :D Brigado pelo feedback! E o trabalho do Fábio no Três Páginas é demais, fiquei honrado com o convite.