Arqui-inimigo

  • 4 de junho de 2015
  • Categoria: Fantasia

Você entra sacando a pistola, alterando o modo para ATORDOAR, é claro, pois é o que se faz ao entrar na mansão do seu arqui-inimigo sabendo que sua família foi tomada como refém. Você derruba os dois guardas no topo da escadaria, cada um com um pino eletrizado no peito enquanto vê as balas patinarem no ar ao seu redor e ceder ao peso da gravidade. Você agradece no íntimo as invenções de Strato, o cientista que salvou das garras de algum crápula esquecido quarenta anos atrás, e até hoje o brinda com os gadgets que incontáveis vezes salvaram sua vida.

Você sobe cauteloso, analisando os degraus, lembrando da vez em que seu arqui-inimigo o capturou no cadafalso sob a escadaria e o teletransportou para uma realidade paralela. Você lembra dos meses que demorou para conseguir voltar.

Você segue pelo corredor e tenta ignorar os recortes de jornal emoldurados nas paredes, cada um relatando os embates encenados às vistas do público: a detonação da grande estátua do fundador da cidade; a armada de zepelins contra a qual você estreou o jato; a máquina da toxina do sono que por pouco não foi ativada no terraço da prefeitura; os vários assaltos impedidos a laboratórios e bancos de dados; as tentativas de retirar do presídio os comparsas de crime; a luta miniaturizada durante o baile de ano novo em sua homenagem, quando foi condecorado guardião da cidade que adotou como sua.

Você empurra a porta no fim do corredor e se vê diante de uma grande mesa posta, vários pratos fumegantes e garrafas em baldes com gelo, seu arqui-inimigo diante da cadeira mais próxima, puxando-a para você com um sorriso, pedindo que se sente. Você pergunta onde está sua família e ele aperta um controle. Uma parede se abre no fundo da sala, revelando o compartimento atrás de um vidro onde sua esposa e duas filhas estão sentadas em cadeiras, amordaçadas. Você avança para elas, aliviado de ver que estão ilesas, e é incapaz de quebrar o vidro reforçado.

Você se volta para seu arqui-inimigo e o ouve dizer que é melhor obedecer se não quiser que o mortífero gás no compartimento seja liberado. Você senta na ponta oposta da mesa, apertando os punhos, estralando os dedos, e não aceita nada do que é oferecido. Você é obrigado a vê-lo comer e beber e limpar a boca com o guardanapo, enquanto responde amenidades com resmungos. Você o ouve esbravejar diante de sua atitude pouco cortês, e, após nova ameaça, passa a comer e beber.

Você pergunta o que ele pretende, por que prendeu sua família, por que foi tão longe dessa vez. Você absorve as explicações sem prestar atenção, pensando em alguma forma de arrancar de seus dedos o controle do gás antes que possa apertá-lo, e ele levanta depois da última garfada, se aproxima e deposita o controle em sua mão. Você se surpreende com a abertura do vidro e liberta os nós que prendem sua família. Seu arqui-inimigo observa tudo com ar de enfado, as mãos cruzadas nas costas, e abaixa a cabeça em sinal de despedida quando você passa por ele e nota as rugas avançadas, o cabelo grisalho e os ombros arqueados. Você vai embora sem acreditar que não haverá luta ou qualquer armadilha, esperando ataques que não vêm. Você entra no jato com a família e parte.

Você se pega pensando no que significou aquilo quando sua esposa pergunta se acredita que é verdade o que ele disse. Você não lembra o que ele disse pois estava com a cabeça em outro lugar, e ela explica que, em resumo, seu arqui-inimigo agradeceu pelos inúmeros momentos e disse que não voltariam a se ver.

Você lê a mensagem de Strato no comunicador, no dia seguinte, informando que seu arqui-inimigo foi encontrado morto. Você entra no banheiro, coloca as mãos na pia e se olha no espelho, tentando entender por que atrás daqueles olhos se alastra uma tristeza tão profunda. Você percebe que seu arqui-inimigo, o último remanescente da época de ouro, descobriu a maneira efetiva de realizar o golpe derradeiro. Você percebe que atrás daqueles olhos o herói está morto.