Burlópolis

  • 21 de maio de 2015
  • Categoria: Fantasia

Mano, relaxa. Quando cê cai aqui é assim mesmo. Tudo gira e retorce e espirala e parece efeito de computador mas não é. É só o teu olho se ajustando, ou melhor, teus nervos óticos se adaptando à pressão, à nova química do ar, à essa manuseabilidade das coisas. Claro que cê não tá morto, porra. Na verdade agora é que tá vivo, eu diria.

É normal, calma. Olha aqui. Tá vendo, não tem nada na minha mão. Tô até esfregando pra não achar que é truque. Pra burlar, e a gente chama assim já explico por quê, precisa estudar bastante. Então no começo cê não vai conseguir fazer nada. Mas olha. Eu quero um lápis. Preciso me concentrar, claro, mas, unhh, aí, tá vendo, ele aparecendo, arrgh. Pronto. Nasceu. Apontado e tudo, grafite 2B, a madeira enfeitada com minha marca. Tudo que eu burlo fica desse jeito. É de uns rabiscos que fazia quando era pequeno, quando ainda morava lá na Anti. Anti é como a gente chama aquele lugar de onde a gente veio. Claro, eu vim de lá. Olha como eu falo a tua língua. Assim, eu posso burlar qualquer língua, mas essa é minha mesmo, vem da lembrança. Quando cê tiver mais escolado pode padronizar tudo com a tua marca.

O que eu fiz começou com a imaginação. Que é um arremedo de memórias entrecruzadas com uma espécie de efervescência mental, de ebulição, nada a ver com a inspiração como cê conhece. A gente acaba logo com esse mito da criação espontânea; tudo é condicionado. Então a maior parte do treinamento é focada na expansão do catálogo de referências. Mas, cara, uma vez que cê tá com a cabeça recheada de info, começam a te ensinar como canalizar essa força invisível e materializar o que der na telha. Não é teletransporte nem conjuração do além; é um rearranjo de partículas e um pouco de licença poética, pra ser sincero. “Burlar” foi um termo criado pra explicar pros recém-chegados que a realidade aqui trapaceava a realidade que eles conheciam, e pegou.

A outra parte do treinamento trata da equação dos burlos. Cê não arranca as coisas de um balde inesgotável de matéria. Tudo é tirado de algum lugar e transformado. A madeira desse lápis emagreceu alguma árvore, se brincar até matou ela. Mesma coisa com o grafite e a tinta. Há um limite, claro. Então além de ser capaz de fechar essa conta cê aprende a lidar com a requisição, a parte burocrática, numa consulta realizada mentalmente pra não ter que se deslocar por aí. Pode ser difícil de entender, mas no fim do segundo ciclo de treinamento cê cria um Comu, esse espaço mental de comunicação integrada e tua vida fica tranquila.

Resumindo: cê começa fazendo bola de sabão, que quase não tem densidade e cor e volume. E é graduado no dia que fizer um sanduba bom o suficiente pra agradar o Conselho. Acredite, agradar aqueles gordos que comem sanduba há milênios não é fácil.

Depois cê ingressa em alguma guilda pra refinar tua arte. Sapato, tijolo, telha, alface, molho barbecue, camisa, cano, tapete. O que quiser. É só trabalhar no horário comercial e pronto, teu direito de viver aqui tá garantido, casa, comida. O resto cê burla. Até dá pra achar outro recém-chegado e engatar um relacionamento se sentir falta. Mas depois de um tempo o pessoal desiste. A gente não morre então não reproduz e sexo e esse amor inventado deixam de ser importantes. Na verdade a maioria extingue as necessidades fisiológicas burlando um corpo auto-suficiente. Claro que demora, exige uma dedicaçãozona, mas pô, esse lance de evolução, de escada ascendente é conceito antigo, comum lá na Anti, então tu já tira de letra, né.

Aí, chegamos. A inscrição cê faz aqui. Mano, foi um prazer te conhecer. Espero que dê tudo certo aí na tua nova vida. Espero sinceramente que se torne um grande burlador. Daqui a dois anos, se quiser trocar uma ideia, me procura no Comu, sou o Huuuuuuuuuuuuedi. Claro, claro. Foi um prazer, Francisvaldo.