Canino e o carneiro [#57]

# Mary tinha um carneirinho/Sua lã era branca como a neve/Onde quer que a criança fosse/O carneiro sempre a seguia #

Canino odiava o carneiro. Com um veto de protesto, enfiou a pata no grande botão do rádio. O dono xingou, lá do fundo do estábulo. Ele saiu acelerado nas quatro patas, ignorando os bufos dos cavalos arredios. Odiava mesmo o carneiro. Não bastasse o desgraçado se achar o rei da cocada preta, ainda tinham feito uma música para ele. Quando chegava a época de tosquiá-lo, Canino tinha poucos minutos para rir do animal pelado antes que o dono chegasse com um casaco que o manteria aquecido até a pelagem voltar a camuflá-lo. Passou rente ao cercado das vacas, andando até o casarão. O desgraçado ainda tinha lugar de honra nos fundos, onde o próprio Canino reinara por muito tempo antes que a filhinha crescesse e exigisse ver o carneiro todo dia de manhã pela janela do quarto.

Ele estava todo jeitosão, pastando arrogante como sempre.

- E aí Canino, tudo belezinha meu velho? – disse o carneiro, rindo por dentro. Conhecia o ódio que o animal nutria por ele.
- Fala Mary, só coçando?
- Mary o caralho, filho da puta. Sou muito macho. E aí, que anda aprontando?
- Ah, o de sempre. Andando. Comendo. Vistoriando o galerio. Sabe como é, esses negócios de responsabilidade o dono só delega pra quem é de confiança.
- Fica aí arrotando essa superioridade, fica. Esses dias ouvi uns comentários suspeitos. A menina disse que tinha cansado do Canino. Tavam pensando em te dar pra fazenda vizinha.
- Mas por quê? O que que eu fiz? – por mais que Canino odiasse o carneiro, sabia que era ele quem detinha o maior arsenal de informações da casa. Era a vantagem da proximidade. Lembrou de quando era pequeno, uma minúscula bola de pelos. Fora privilegiado por algumas semanas vivendo dentro da casa, mas foi só crescer um pouco e a mordomia acabou.
- Sei não, Canino. Mas se eu fosse tu ficava mais esperto. Faz uma graça pra menina pô. Cê fica todo arredio aí, eriçando pelo quando vê ela. O dono e a dona podem te amar, mas é a guria que manda, cê sabe – Canino tinha pavor da menina desde que ela se dedicara a abraçá-lo e esganá-lo um dia inteiro. Outra vez o jogara no meio do rio, só pra ver o que acontecia. Mantinha distância.
- É, vou tentar. Vou nessa, Mary. Cuida pra não comer grama podre aí. Andei cagando por aqui hoje de manhã.
- Você é um escrotinho miserável, Canino. Vai se lamber na casa do caralho, vai. Chispa.

Canino obedeceu. Subiu a árvore com as patas afiadas, percorreu o galho mais alto e pulou pro telhado do casarão. Ficou lá deitado, tomando banho de sol, observando o carneiro chegar perigosamente perto do seu cocô matinal. Pelo que já percebera ele tinha um problema de olfato e não via muito bem, e costumava comer qualquer coisa que estivesse dando bobeira na grama. Abriu a boca, esticou a língua. Miou alto pro sol e começou a lamber sua pelagem manchada. Que tédio essa vida, pensou.