Da velhice que se escolhe

Batem na porta. Duas, cinco vezes. Esmurram a madeira, os encaixes de ferro ganem e me arrancam da cama, com ou sem sono, o pau balangando, a visão borrada. Abro. Os dois garotos atrás de Roger riem, ele entra e fecha a porta.

Tampe as suas vergonhas, Bulvar, precisamos de você.

O que foi agora, seu filho de uma puta? Algum dos gatos de lorde Duns tá com a unha encravada? Alguma puta engasgou com porra e precisam enterrá-la longe? Erraram a conta das sementes e não sabem o que diabos fazer e vêm me tirar da cama no meio da merda da noite? O que foi, desgraçado?

O herdeiro. Duns Segundo. Ele conseguiu, Bulvar. Finalmente fugiu. Achamos que pulou o muro longe da sentinela e se embrenhou na mata. Sumiram pães da cozinha, presunto, água.

E o que eu tenho com aquele putinho muchibento?

É o putinho muchibento que vai colocar ouro na sua mão e comida no seu prato logo mais, homem. Não seja tolo. As mulheres da cozinha, todas ouvem Mengarda. E ela disse que o maior rastreador de toda Lavjna está aqui, escondido. Ela disse o seu nome, Bulvar. E Duns quer você. Agora.

Aquela coroca goeluda quer acabar com o sossego que eu comprei comendo a lavagem dela esse tempo todo

mas

na verdade

Bulvar sentiu uma pontada estranha nas costas quando ouviu a palavra “rastreador”. Parecia a pontada que sua verruga traía quando o tempo úmido apontava chuva, ou que latejava depois de arrancar as folhas da calha do casebre, mas não era, era a pontada da tira apertada da mochila quando a carregava o dia todo sem trégua e dormia encolhido ao redor duma fogueira no meio do mato.

Quase não lembrava; os músculos não reagiam com a lentidão que se esperava mesmo de um desvalido e pareciam ter enfeitiçado o músculo da memória pra não ultrapassar o dia em que assumiu o rebanho nos campos de Duns. Na época se recuperava da queda e da perna esmigalhada e faria qualquer coisa pra não morrer de fome, mas o declínio continuou mesmo depois da cura, postos mais baixos até o título de faz-tudo alojado nos fundos da mansão do lorde, rivalizando com o cachorro em estima e importância.

Soubesse o lorde que antes disso foi Bulvar quem abriu picada na floresta ao sul pra chegar ao reino de Flórite, soubesse que foi ele quem achou o regicida escondido nas cavernas de Lótaren, soubesse que foi ele quem chefiou a fronteira no período turbulento da disputa de poder entre os herdeiros, onde ganhou fama como o carniceiro que encontrava todos os desertores, soubesse que ele ganhou experiência caçando e despelando os enormes cachorros do mato de Lówi, sua terra natal; soubesse o lorde de tudo isso, não deixaria o velho entregue às tolices do cotidiano, descansado, gordo e rancoroso.

Aquela era a pontada nas costas que marcava o ritmo do avanço nas florestas e desertos entre as picadas de mosquitos e cobras, e que picava agora a vontade esquecida. Por que não voltou pra estrada quando a perna sarou? Por que o filhinho da puta mais velho de Duns demorou tanto pra fugir? A empolgação reavivada se traduziu numa ereção monstruosa. Roger xingou o velho, mandou esconder aquilo e se aprontar pra acompanhá-lo até o portão, onde Duns já estava a postos, segurando um cavalo descansado pela rédea.

Bulvar se vestiu lembrando do toque da pederneira e do gosto do bico do cantil, dos pés latejando e das bolhas estouradas amansadas com hortelã esmagado. Lembrava a cada momento um antigo gosto ou cheiro que engolia junto com o frio da aurora. Quando chegou ao portão e ouviu as ordens de Duns e montou no cavalo, demorou pra se tocar que todos pararam pra prestar atenção aos gritos e choramingos que vinham da viela principal da mansão. Uma das criadas trazia o pequeno Duns pela orelha.

O lorde desmontou, xingou e estapeou o filho, depois o abraçou. Os homens começaram a desmontar dos cavalos, rindo pra si, rindo pros outros, da travessura do moleque, escondido em algum buraco da casa.

Bulvar trotou com o cavalo até o limiar do portão. Alguém gritou seu nome. Olhou a estrada que se abria. O sol derramava migalhas de luz difusa por entre as árvores e demarcava a terra batida até a curva perto da ponte. Gritaram de novo. Ele se virou, desapeou, ignorou o chamado e voltou pesado pro casebre, a perna curada mancando de novo, depois de tantos anos.