Danoninho não mata a fome

Maicon correu de um lado da cozinha pro outro, escapando das unhas compridas da mãe, passando por baixo da mesa e se enfiando no fundinho entre geladeira e parede. A mãe correu atrás, meteu a mão pelo buraco, unhou o braço do menino de tudo que era jeito. Sangue correu. Na sala, a irmãzinha de dois anos chorava.

Sai daí, seu demônio, sai daí, seu pilantra, sai daí, dizia a mãe, os olhos arregalados. Maicon se espremia, queria entrar na parede, entrar no chão, sumir. Sai daí. Sai daí agora! Ele sentiu as pontadas no braço arderem. Os olhos avermelharam. Um barulho de porta batendo e a mãe sumiu. Maicon ficou, agora pra esconder a cara de choro, todo mundo sabe que o pior não é perder, e sim deixar entrever a derrota.

Era o pai. Os dois discutiam na sala, a irmã parou de chorar, a mãe devia ter pegado ela no colo, e o volume da conversa foi aumentando enquanto entravam na cozinha, agora até os solucinhos da irmã bem nítidos.

E não foi um ou dois, Alberto. Esse infeliz me comeu os oito potes de Danoninho da menina. E ainda colocou no fundo do lixo com uma sacola por cima, acredita, achou que eu não ia ver. Ele não tinha o Danoninho dele?, o pai disse. Ele escolheu uns Danettes quando fui no mercado, a mãe respondeu, e comeu tudo ontem. Onde vai parar esse menino, Alberto, me diz! Ele não para de comer, tá atentado, agora começou com traquinagem dentro de casa. Onde já se viu?

As vozes se aproximaram da geladeira. Maicon olhou pro buraco no chão embaixo do armário da pia. Era muito estreito, não caberia ali deitado. Não tinha pra onde fugir. Sentia a quentura da grade das costas da geladeira, o motor aos seus pés fazendo barulhinho de inseto. Ouviu a porta dela se abrir, o desenroscar da tampa da garrafa de água. Ouviu o líquido correr pela garganta do pai, em espasmos, percorrendo a traqueia.

Cadê ele? A mãe não respondeu, mas logo o pai assomou com o carão vermelho na abertura. Maicon viu o colarinho esgarçado, a gravata frouxa, e começou a chorar antes do castigo. Filho, disse o pai, por que fez isso? A mãe não te falou que era da mana? E os oito potes, ainda por cima? Pra quê, me diz. A gente te deixa passar fome em casa? É isso? Responde.

O menino ficou quieto.

Então a geladeira se mexeu. Pra trás, pra cima dele. Virou o rosto e a grade fincou na bochecha. Também na barriga e nas coxas, quente. Responde, disse o pai, olhando pro menino, que gritou. Não deixaria marca alguma, mas pra ele era a brasa do inferno afundando nos ossos. Responde!, vociferou o pai. O garoto insistia no grito. A mãe gritou junto, a irmãzinha começou a chorar de novo. O pai foi puxado, sumiu. O garoto empurrou a geladeira com toda a força, ela começou a tombar mas então o pé foi junto e dançou e acabou parada mais à frente. Vidros e potes se arrastaram pelas prateleiras, a porta voltou a abrir, o som de coisas se espatifando.

Maicon ficou assustado com o barulho. Não viu o pai nem a mãe. O gritaceiro começou na sala e foi diminuindo enquanto subiam a escada pros quartos. Ele enfim se desgrudou da parede pra ver o estrago. A comida da geladeira toda remexida, caída e melecada no chão. A irmãzinha olhava aquilo maravilhada. Parecia encantada com um pedaço de vidro do pote de geleia ainda decorado com a pasta vermelha de amora. Mas antes que o alcançasse, Maicon a pegou e a levou pro sofá da sala.

Sentou com ela no colo, ela olhando pra cozinha, mexendo os bracinhos na direção da bagunça. Ele a sossegou, sentou nas suas pernas, ela abriu careta de choro. Ele começou a estalar os dedos. Ela adorava aquele barulho, ficou tentando pegar os dedos do irmão enquanto resvalavam um no outro. Maicon viu que a cerveja que o pai tinha trazido da rua estava ali na mesa de centro, suando, formando uma poça. A mãe ia brigar quando visse, manchava a madeira.

Seus dedos doíam quando a mãe desceu, chorando, pegou a menina e ajeitou no seu colo, sentou do lado dele e o abraçou. Ela ainda não tinha visto a cerveja. Mas logo veria.