De muros que sonham destinos

Diante do muro da ponta norte do jardim há um formigueiro, o único no terreno. Por isso sei que é dali que saem as formigonas que andam pela casa. E foi o muro que atrasou elas.

Dona Maria tem o hábito de fazer bolo de fubá depois do almoço, quando meus pais se deitam, e eu e minha irmã brincamos no quarto ou na sombra da mangueira nos fundos. Dona Maria usa melado no lugar do açúcar, e sempre que pinga em algum lugar, como o tampo da mesa ou da pia, é questão de minutos até que as cocôzentas apareçam. Ontem ela deixou pingar na tampa da panela de pressão e não percebeu.

Minha mãe desceu a escadaria e pegou duas latas de leite condensado pra fazer doce de leite. Apanhou a panela de pressão e a tampa em cima da mesa, notou o pingo do melado e esfregou com a esponja. Fez rocambole e comemos no café da tarde. Bem diferente do que aconteceu no meu sonho de semanas atrás.

Nele, minha mãe desceu, pegou as latas de leite condensado e enfiou na panela. Quando apanhou a tampa, despreocupada em uma conversa com Dona Maria, não percebeu as formigas. Só percebeu ao sentir duas delas escalando sua mão e soltou o que segurava; a panela despencou no pé descalço; ela pulou com o outro pé e se desequilibrou e caiu de lado; bateu a cabeça na ponta da mesa; convulsionou no chão, a poça de sangue ao redor da cabeça cada vez maior.

O muro das formigas não foi o primeiro. Seu Joca, que é o faz-tudo da casa, me ajuda. É ele quem mistura o cimento e a areia e a água, é ele quem carrega o balde, é ele quem junta as pedras grandes no seu tempo livre pra criar a estrutura. Mas o muro eu construo sozinho. Que só eu sei as medidas. Ele observa, dá um pitaco ou outro, diz que nunca viu criança brincar de construir muro de verdade.

Até agora já consegui desviar um vendaval que derrubava e entrevava Dona Maria no varal de roupas, a vista da casa aberta de um lobo fugido da matilha, minha irmã da trilha que acabaria com seu pé enroscado em uma cobra, meu cachorro de ver um pombo morto caído na grama e de futricar e lambiscar um pedaço podre e morrer com febre no estômago, as formigas de derrubarem minha mãe. Um pra cada sonho, e não paro de sonhar. Meus pais dizem que nosso quintal tá virando um cemitério, os muros feito lápides erguidas do solo. Mas por enquanto me deixam em paz.

Precisam me deixar em paz pelo menos até o dia em que meu pai, grilado depois de alguma discussão, vai andar pelo jardim à noite e sentar em cima do muro mais alto que ainda vou construir e ficar encarrapitado ali em cima, fumando um cigarro. Só por causa da vista privilegiada, vai notar algo se mexendo no rio lá embaixo. Vai encontrar um nenêzinho numa cesta, vindo sabe-se lá de onde. Vai trazer pra casa e criar até o neném virar Astolfo, meu irmão, que ainda vai me passar a perna e quebrar meus brinquedos e roubar a atenção que eu ganho da minha irmã. Família é assim mesmo, tem a parte boa e a ruim. A boa é que eles vão ficar tão felizes que vão me deixar construir muros por muito tempo ainda, pelo menos até onde os sonhos chegam.