Debaixo da cama [#179]

  • 1 de julho de 2014
  • Categoria: Fantasia

Saulo não conseguia dormir.

A culpa não era da falta de sono, nem das luzes entrando pelas frestas da janela, nem do frio. A culpa era do barulho que nascia embaixo da cama, o arranhar pesado e o ronronar ocasional de algo que lembrava um gato se gatos tivessem trezentos quilos e voz rouca. Segurava a ponta do cobertor com os dedinhos suados, olhos arregalados, um medo que eriçava os pelos da nuca.

Lembrou do Supercão, de como era valente, de como derrotava seus inimigos com um bate-papo amigável sobre a necessidade de comer verduras e frutas. Empurrou o cobertor, enfiou a cara lá embaixo e encarou o negrume nos olhos. Ligou a lanterninha e viu a cara peluda e os dentes pontiagudos do monstro. Ele piscou uma, duas vezes.

- Pode apagar a luz?
- Que você tá fazendo?
- Batendo ponto.
- Faz tempo que tá aí embaixo?
- Faz. Mas dormi no começo.
- Cansado?
- Pra caramba. Nasceu o terceiro mês passado. Não tava nos planos. Agora tenho que dobrar nos finais de semana.
- Terceiro o quê?
- Filho.
- Ah. Parabéns.
- Brigado. Olha, se quiser eu paro de arranhar o chão.
- Acho que o barulho com a boca incomoda mais.
- Aí não posso fazer nada. Tenho asma. A oferta é só a garra.
- Tá bom.
- Valeu. O pessoal do departamento fica puto quando a gente–

Um estampido seco de madeira e vidro quebrado, um vendaval, um latido alto e algo molhado caindo. Quando deu por si Saulo estava no canto do quarto, aninhado nos lençóis alvoroçados, observando as ripas de madeira que eram a sua cama rodeando o cadáver peludo do monstro. Sentado sobre a barriga fria, o Supercão alisou sua capa e coçou o focinho encharcado de sangue. Puxou do bolso de utilidades uma garrafinha de licor de osso e bebeu um longo gole.

- De nada, rapaz.
- O que você fez? O monstro não era ruim. Ele conversou comigo!
- De qualquer forma, era um monstro.
- Mas por quê? Você não faz isso. Você conversa e convence ele a comer maçã, cenoura, alface e tomate!
- No desenho, guri. Na vida real isso não cola não.
- Você… Mas… – Saulo começou a chorar, pensando na esposa do monstro e seus três filhinhos.
- Rapaz, chorar não leva a nada. Eu fiz o meu papel, ele fez o dele, você faz o seu. Que é ficar bonitinho e agradecer o Supercão. Então de nada. Agora dá licença que tem outros na fila. Se der, pede pros teus velhos comprarem uma lancheira minha. Um trocado só, saca. Té mais.

O Supercão voou pra longe. Saulo engoliu o choro e acordou os pais. Daquela noite em diante foi assombrado pela anemia e pelas ameaças dos médicos. Adquiriu repulsa por verduras e frutas.


*Os monstros têm lugar cativo no universo Flash Fiction. Conheça outras aberrações que já deram as caras por aqui:
-Herança inesperada [Trilogia Terror - capítulo 1]
-O monstro no sótão
-Batata frita
-Bonihkomara
-Homúnculo
-Golem de churrascaria
-Alvariomano