Diário

Por favor, não pare de ler. Esta página é a única coisa que me resta nesta cela quente e se Deus for mesmo justo o toco de lápis será suficiente.

Meu nome é Armand Houecqueville, nascido em Le Havre, França, professor de filosofia na faculdade da Argélia. Escrevo isto em 16 ou 17 de fevereiro de 1957, da capital, Argel. Mas minhas contas podem estar erradas. Sou mantido prisioneiro no apartamento de um dos comandantes da Frente de Libertação Nacional, o muçulmano Aidel Hodain, desde novembro do ano passado. Fui capturado durante a madrugada por homens encapuzados, trazido aqui e torturado onze dias seguidos até dizer tudo o que sabia e não sabia sobre as operações francesas. Me tomaram por alguém com conhecimento das manobras governamentais. Não sou nada, apenas um patriota francês defensor da Argélia Francesa.

Estou cortado do mundo externo. Meu único contato é com o próprio Hodain em visitas frequentes, quando me consulta a respeito de conhecidos simpatizantes com a causa. Denunciei muitos inocentes para continuar vivo. Não me orgulho disso. Ele justifica minha prisão e seus atos terroristas como pagamento na mesma moeda pelo que o general Jacques Massu tem feito com os muçulmanos argelinos. Repito: não passo de um cidadão, um intelectual afeito à nação e contrário à independência deste país erguido do pó. Ele afirma que só serei liberto quando prisioneiros mantidos pelo governo forem libertos. E persisto, pele e ossos.

Ouço explosões. Ouço gritos, conversas ininteligíveis na rua. Estou num prédio, pouco acima do nível do chão. A FLN continua firme na campanha de reivindicação por força bruta e o exército continua falhando em impedir os auto-proclamados guerreiros da liberdade. Ontem um tiroteio próximo alimentou a expectativa de resgate, mas não foi o caso. Penso em Juliette brincando no jardim, em Albertine cozinhando com o avental bege. Não deveria ter aceitado a transferência. Agradeço todos os dias a ironia da saúde frágil de minha pequena, que atrasou sua vinda tempo suficiente para evitar outra tragédia. Nem quero imaginar como seria se estivessem comigo. A capacidade humana para o mal em prol de qualquer bandeira me impressiona.

Espero que este diário sobreviva. Ao menos esta folha. E insisto, amigo leitor, minha única alternativa restante, se apiede de um compatriota humano e me auxilie num último desejo: avisar minha família. Estou bem. A saudade das duas e a esperança me mantiveram vivo. Eu imploro, entregue esta mensagem. Nosso endereço em Paris é 782 Rue Gabriel Peri, St Denis. Minha esposa é Albertine Houecqueville, seus pais são Jean e Monali Bel. Minha filha querida, Juliette, tem quatro anos, olhos azuis e cabelos louros como o da mãe. Diga que eu as amo. Tudo o que mais queria era abraçá-las uma última vez.

Por favor, por favor, por favor. Me ajude. Não me abandone.

Armand Houecqueville, Argel, 16/17 fev 1957