Dor no peito

Deus vai curar.

E se não curar o mundo vai acabar mesmo. O pastor disse, a Bíblia, tá na TV. Pra que preocupar? Deixa essa reclamação de lado, essa dor, esse sofrimento. Reza mais, boba. Usa esse tempo pra louvar o Senhor e arregimentar a fé. Arregimentar é palavra bonita, coisa de pastor mesmo. Coisa linda.

Ignora esse calombo no seio. Ignora. Mostra pra ele não, marido lá quer saber de mulher bichada? Quer problema? Quer casa limpa, comida quente, mão no cacete. Tá doendo mas quem não sofre nessa vida? Não faz cara feia na hora da janta. Não faz. Ninguém gosta de cara amarrada.

Sutiã lascado. Dói muito pra fechar atrás. Dói o braço se esticar. Deixa sem, só hoje, amanhã melhora. Ele vê os peitos caídos quando tô varrendo a varanda. Reclama da pouca vergonha. Dessa preguiça de velha, se entregando. Como é que eu fico desse jeito? Tem gente passando na rua e olhando a mulher dele com as peitolas de fora. Não tem cabimento. Peço pra me ajudar a fechar, então. O braço tá doendo. Ele resmunga mas faz. Meu velho é bom.

O pastor continua falando. Continua doendo. O mundo não acaba. Eu não consigo levantar da cama. Tento, brigo, xingo, não vai. É dor demais. A careta vence. Ele reclama, como é que vai começar o dia sem café quente? Vê minha cara, resmunga, diz que não é nada. Falo pra fechar a janela e levanto a camisola. Vê ali perto do sovaco uma bola preta, coisa feia, demoníaca. Diz que diabo é isso, mulher. Como não falou nada antes? Me põe no carro, me leva pra capital, pra casa da filha.

No hospital, tomando morfina, descubro que é câncer. A biópsia volta. Deu metásalguma coisa. Meu velho chora. Minha filha briga, como é que eu não falei antes, como é que suportei a dor. A gente aprende, filha. Com o tempo. E aprende a ter esperança também. Não fica assim.

Deus vai curar.

  • Loreci Demeneghi

    Muito bom!