Eles chegaram, senhora. Peço pra entrarem?

O trote é ritmado, a estrada lisa, e não fossem as cãibras nas pernas e as dores na bunda seria bem possível dormir aqui em cima. Nossos cavalos seguem devagar, as rodas da carroça guinchando vez ou outra.

— Depois dessa curva fica a cidade dos cachorros, Nelson. Aí são mais umas duas horas até a capital.

— Então só mais duas horas prum banho quente e uma cama macia.

— Se a audiência for concedida assim que a gente chegar, você quer dizer.

— A rainha vai nos atender rápido. Ela não vai querer esse fedor na porta do castelo.

Jodapê se referia aos corpos empilhados na carroça, cobertos com um pano velho manchado de sangue seco, bálsamo pros olhos, não pro nariz. Como andávamos sem trégua, os abutres não se atreviam a descer. Diferente das moscas, que rodeavam e se enfiavam pelos cantos do pano e faziam festa. Por isso as cabeças seguiam penduradas nos lombos das montarias, essas sim em sacos bem fechados pra serem erguidas, reconhecidas e depois enfiadas em estacas em alguma praça pública.

Os cavalos a princípio se assustavam com o cheiro de sangue que volta e meia soprava num vento contrário, mas logo se habituaram. Ao longo do caminho, os viajantes mantinham distância, e não arrumavam coragem pra perguntar do que se tratava a carga. Nossas caras também não ajudavam. Eu e Jodapê havíamos passado os últimos cinco meses caçando, alternando horas de sono entrecortadas em galhos enodoados e cavernas de chão pontiagudo, ou no conforto ocasional da terra. Não era questão de honra. Era trabalho, puro e simples. Um contrato. E tínhamos vindo de muito longe pra honrá-lo.

Os oito cadáveres haviam sido homens treinados pelo mesmo ancião que treinou nosso avô, um mestre reconhecido por suas habilidades incomuns, mágicas, diriam muitos. Mas há muito ele tinha desaparecido e esses últimos discípulos, abandonados no meio do treinamento, resolveram espoliar seu legado como bem entendessem. Que era mantendo um reino rico no fio da espada, a salvo em troca de fortuna. A rainha não deu importância quando primeiro recebeu a ameaça. E então perdeu boa parte de seus lordes e ao menos um parente nas mãos dos oito homens, espalhados pelo reino. De todas as mortes, uma única coincidência: sem testemunhas, sem pistas.

Quando o mensageiro chegou, atravessando o mar e as semanas que separavam nossas terras, prontamente decidimos agir, menos pela recompensa e mais para honrar a memória de nosso avô e seu mestre e por um fim àquela desonrosa demonstração de força, a técnica suprema a serviço do crime rasteiro. Descemos do navio e iniciamos o trabalho lentamente, nos acostumando ao território, sintonizando o respirar da terra. Ao cabo de meses de preparação, enfileiramos as serpentes e cortamos suas cabeças uma por uma, antes que soubessem do risco que corriam.

— O que vamos fazer agora, Nelson?

— Não tenho a menor ideia, primo. Acha que o ancião andou treinando outros por aí?

— É uma boa pergunta.

Nosso reino está pacificado. O terceiro de nosso grupo, outro primo mais jovem, ficou pra trás, como salvaguarda. Um é suficiente. Agora estamos eu e Jodapê há muito fora de casa, longe pela primeira vez, encerrando nossa missiva. Resta voltar? Do pouco que Jodapê diz, percebo também nele o fascínio pela outra opção.

Sem dúvida nos será oferecido o paraíso na terra em troca de nossos serviços, uma vez comprovada a eficácia. Sem dúvida recusaremos. Mastigo um gomo de tangerina quando viramos a última curva na estrada e depois de um monte se descortina o castelo, ainda atordoante pros nossos olhos, com suas cores vivas e os topos das torres arredondados feito chama de vela.

— É o castelo.

— Vejo o mesmo que você, primo.

— E o que vê depois dele?

— O mar. E as terras que ainda não conhecemos.

— Então está certo, Nelson. Vemos o mesmo.

Adentramos os portões do castelo, minha barba tosca escondendo o sorriso.