Escamas

  • 11 de junho de 2015
  • Categoria: Fantasia

Às vezes, entre uma passada e outra, ela ergue o visor do capacete e sente o vento no rosto, entrando em golfadas e enchendo os cabelos amassados, congelando as orelhas e a ponta do nariz. Se imagina disparando pelo céu impulsionada por um pulo do Bichano, subindo e subindo e perfurando as nuvens e abrindo os braços no ar pastoso que a desacelera, e como num sonho nada no mar de névoa, rodopia, bate as pernas, sente o contento bombear o espaço entre a pele e o uniforme com ar quente, roupa gorda de astronauta, esquecendo as bombas que pipocavam lá embaixo, o fogo, os tiros de metralhadora resvalando na casca, os tanques pisoteados, helicópteros destroçados.

Puxa as alavancas guiando Bichano, que custou a entender o que ela dizia naquelas longas noites acampados em Chapada dos Guimarães, quando ainda não era tão grande e podia encará-lo nos olhos. As histórias possuíam inúmeras reviravoltas mas sempre acabavam bem. Talvez por isso ele tenha ficado assim, achando que a vida, independente do que acontece no meio, acaba com felizes para sempre.

Erro maior era deixá-lo ouvir o rádio de pilha até adormecer. Foi esquecer de desligar uma única noite e o noticiário da manhã encheu sua abertura auricular com o incêndio no distrito industrial de Cuiabá. Alvoroçado, fez sinal para que subisse em suas costas e se segurasse, saltando pelo cerrado. Dos limites da cidade em diante guiá-lo se tornou impraticável, patas amassando asfalto e árvores e qualquer coisa no caminho. Quando qualquer coisa se tornou casas e carros tentou brecá-lo, mas a espiral de fumaça já era visível no horizonte e ele seguiu imperturbável.

Cuspiu toda a água colhida no rio mas não foi suficiente para apagar o fogo, então pisoteou as estruturas em chamas até que findassem e suas patas torrassem e o exército, a polícia e o resto da ofensiva chegassem para detê-lo. Ela puxou as alavancas e o guiou de volta para o mato.

Agora foge tentando não pensar nas consequências, no que acontecerá quando forem pegos, quando derrubarem Bichano e ela junto. Sabe que em muitos buracos das passadas se amontoam cadáveres esmagados. A intenção era salvar e, num segundo momento, defender-se, mas explicações serão ignoradas e nada o livrará da execução. Não há lugar no mundo capaz de escondê-lo, não agora que sua existência foi divulgada. Até o confronto inevitável ela ouve os soluços de Bichano, que momentos antes da fuga, quando transportava um neném na ponta da unha para um local seguro, se assustou com o rugido de uma sirene e deixou o pequeno rolar e mergulhar no ar que não foi capaz de desacelerá-lo porque não era feito de nuvens, não era feito do ar pastoso onde ela agora se imagina, palácio felpudo, uma vida de paz com rádios de pilha, sol ardente e passeios encantados, longe do fogo, longe de tudo.