Esporro

O ombro coça embaixo da alça do sutiã. Esse aqui ainda nem machuca muito, mas aquele que a mãe comprou na Riachuelo, meu Deus, que coisa horrorosa. Ela dizia que eu desenvolvo alergia a coisas estranhas. Talvez seja verdade. Tenho alergia daquele sutiã. Mas na ânsia de não jogar nada, absolutamente nada fora, guardei. E se calha da Inês ficar doente e pegar uns dias de folga, como aconteceu essa semana, a roupa suja acumula e acabo usando ele. Sorte que não tô com ele hoje. Ou o ombro estaria doendo mais um pouquinho ainda.

— … e não quero saber, Julia. Não quero saber, você não tem idade pra isso, tá me ouvindo? Não tem idade…

Esse negócio de não jogar as coisas fora peguei do meu pai. Ela dizia que a gente ia precisar mudar pruma casa maior só pra guardar as tranqueiras dele, que um dia a gente pagaria dois aluguéis, um pra gente e um pra tralha, que se revirasse aquelas coisas era bem capaz de achar um vizinho e dois cachorros que se perderam ali dentro em alguma esquina do passado. Canso de coçar o ombro. Descanso a mão na porta do carro, no vidro. Tá frio. As gotinhas escorrem costurando um caminho minhoquento pra chegar no chão, ali no asfalto.

— … que querem se aproveitar. É claro, Julia. Não vai mais, ouviu? Não quero saber de história, é da escola direto pra casa…

Embaixo daquela marquise a mulher espera a chuva passar olhando o relógio. Atrasada pra alguma coisa. Ela fica olhando os sapatos, vendo se tá respingando água neles. Ela usa uma saia preta bem justa, cortada acima dos joelhos. Os joelhos dela parecem duas carapaças de tartaruga. A curvatura da batata de uma perna é diferente da outra. Deve ter engessado. Acaba ficando mais magra mesmo. Ela tem uma bolsa marrom. E segura uma chave longa. Uma chave de carro. Olhando no relógio e olhando o sapato e olhando algo do outro lado da rua, um carro, que deve ser o dela. Alguns metros, acho que nem dez, e ela não pode entrar porque vai se molhar toda, provavelmente o guarda-chuva tá atrás do banco, provavelmente ela desceu pra entrar nessa farmácia e comprar algo, coisa rápida, um anador, um anti-alérgico, uma camisinha, um teste de gravidez, e agora ficou ilhada porque a chuva começou e chuva não escolhe hora pra começar, né.

— … grande ideia? Os professores também? Por tudo que é mais sagrado, filha…

O mais gostoso da chuva é esse barulho que martela o teto do carro. É a única coisa que preenche o ouvido da gente quando vem nessa melodia gostosa assim, nessa pegada heavy metal, pedal duplo comendo. A mulher volta a checar o relógio. Ela quer tanto que a chuva acabe. Ela tem que chegar em algum lugar. Mas o ponteiro. O ponteiro do relógio. Podia parar ali, travar pra sempre naquele segundo. Mas não trava. Nem o dela nem o do painel do carro, que pisca e pisca e pisca e não para, de jeito algum, não para de piscar.