Este aparato precisa ser desenterrado

As vozes nos alto-falantes cessaram.

Aquilo sim era um sonho. As vozes. Não isso. Não a sensação de letargia ao se ver deitado, em pedaços, no deserto. Deserto e mar: um passado de extremos se arrastava como uma história mal contada, que pouco considera as gradações do cinza e as miudezas da vida. Ojeno Valaso, o protagonista de sua própria história, abandonara aquela casca. Reluzia mesmo sem sol, ainda viva mesmo que morta.

Os gigantes se aproximaram. Demoraram dias para encontrar a carcaça ainda não reclamada pelos abutres e outros animais, eles mesmos buscadores de carniça para encher suas panças. A comemoração do novo festim foi interrompida pelo mais gordo e mais experiente deles. Os restos de Clavietika Tresojos não eram caça costumeira, não podiam ser confundidos com reles comida. Se brilhavam, eram importantes. Se eram importantes, pertenciam ao imperador, Koral Mataxia. O gigante desatou as peles de sua barriga e aninhou Clavietika ali dentro. Reuniram-se em círculo e entoaram o mantra sagrado, que os tranportaria à grande capital, o coração do império, Topiltzin.

Em Topiltzin, percorrendo os corredores do palácio, Koral bufava e limpava as unhas das patas na ponta da presa. Um javali humanoide provocaria pesadelos em qualquer pessoa, e reféns desse pesadelo eram seus súditos, a população que labutava nas piraminas, extraindo da terra os minérios, que oferecia seus infantes nas liturgias semanais, que era mantida a rédeas curtas pelos medicamentos. Adastra, o braço direito de Koral, era quem comandava as liturgias, quem conclamava, abençoava e condenava o povo, quem supria sua necessidade ideológica. Era ele quem buscava nos registros os nomes das crianças, ainda não conspurcadas pela medicação para ficarem atentas na noite em que Koral Mataxia abriria a porta da casa dos seus pais, se esgueiraria até seu quarto e as recolheria nos braços peludos. Depois da refeição, sempre mais adocicada pelo tempero do medo genuíno, o imperador descartava os restos no jardim.

Quando os gigantes requisitaram audiência e depositaram Clavietika no chão, não esperavam que aquele resto desconjuntado ainda guardasse um fio de energia suficiente para insuflar os olhos e lançar rajadas que mutilaram muitos deles. Diante da ameaça, Koral ordenou que Clavietika queimasse no forno junto com os gigantes, para que pagassem pelo erro de trazerem ali algo que nunca encontraria o caminho sem auxílio.

As cinzas foram enterradas no jardim do palácio, entre as estátuas falantes. Adubadas pelos pés dos serviçais que cortavam as folhas dos arbustos e pelas crianças que corriam e brincavam ignorando a tragédia que se abateria sobre elas caso seus nomes fossem lidos na próxima liturgia, os restos de Clavietika fermentaram até que o portal pudesse ser aberto. Por ele passou Cerpin, desde a operação em Eriatarka não mais Cerpin, e sim Moattilliatta, a arma das lendas.

Bateu as asas chamuscadas e dançou no céu, se habituando à nova forma. O poder rugia, e rugiu quando sobrevoou o território destruindo todas as piraminas, carbonizando os que sobreviviam castrados quimicamente. Quando Koral deixou seus aposentos e circulou pelo palácio, viu no jardim, empilhados, os corpos de toda a sua capital, milhares e milhares reduzidos à imobilidade da carne e do osso. Moattilliatta o aguardava sentado na cabeça da estátua mais alta. Bastou um golpe, um único golpe impulsionado pelo sangue de todos os que haviam doado a vida para libertar suas crianças, e Koral Mataxia caiu em duas metades resfolegantes que ainda tentavam se reagrupar quando foram esmagadas nas mãos do inimigo, os braços de nervos expostos e ligamentos biônicos atuando sem dificuldade.

Sentindo convulsões em todo o corpo, Moattilliatta, ou Ojeno Valaso, ou Clavietika Tresojos, ou Cerpin Taxt, se dirigiu à ponte nos limites da capital.

Fim. Ele não a atravessa. A travessia não será concluída. A história de todos estes personagens se encerra aqui. E a de outros, desconhecidos, começa em seguida. Mas Cerpin atravessa a ponte. Este parágrafo não deveria existir. Cerpin me encara.


Este drop é o sexto e penúltimo de uma série do Flash Fiction inspirada no álbum de estreia da banda de rock progressivo The Mars Volta, De-Loused in the Comatorium (2003). A sonoridade, as letras enigmáticas e o próprio conto escrito por Cedric Bixler-Zavala e Jeremy Michael Ward, que foi o ponto de partida conceitual da banda, formam a base referencial deste mini-projeto.

Leia os outros drops da série Despiolhado no Comatório:
1 – Percepção extra-sensorial inerciática
2 – Junção exoesquelética da ferrovia
3 – A embriaguez dos faróis
4 – Eriatarka
5 – Cicatriz
7 – Televadores ex machina