Heisenberg [#120]

Muita porcaria na mesa. Salgadinho, cigarro, chiclete, bala, isqueiro. Chapéu preto, redondo, copa reta. Coisa dos anos 20, gângsters que saíam bem na foto.

No espelho a testa vincada. As papadas. As sobrancelhas teimosas. As manchas na pele. Os olhos fundos de quem já viu demais, a carapaça quitinosa cobrindo as íris e translucidando o mundo além do para-brisa do motorista encaixado atrás do topo do nariz, o cérebro o pufe gostoso de um velho que já passou muita marcha.

Coloca o chapéu. O motorista se endireita e estala os dedos. No reflexo um desconhecido, mais nítido e lúcido e real que o manequim de momentos atrás, um boneco de vodu trespassado pelas agulhas enfiadas por todos.

Abre a boca, deixa a fala mansa bater e voltar, um discurso tão sensato que convence a si mesmo das mentiras inventadas para levar o teatro em frente. Sempre em frente, diz o motorista, fumando e soltando baforadas pelos ouvidos. Vai, meu velho, tu é foda, tu consegue, tu é o maioral.

Ajeita o casaco, limpa os óculos na toalha, penteia o cavanhaque com o dedo. Sai pra rua e encara o mundo com um ódio transfigurado, tudo que está errado, tudo o que não conseguiu, tudo o que merece ter e não tem, e morde os dentes como quem desafia as linhas encaixadas num gráfico, uma apresentação de power point da vida, um rabisco de laser numa tela branca e esterilizada, um desenho redondinho, fofo, cuti-cuti.

Não. A vida feia sob o chapéu é linda. É viva. É mais que essa palhaçada toda.

Desliga o corpo. O pequeno grande motorista toma conta, apertando a embreagem com tanta força que um puf cinético desce pela narina esquerda. Tu é foda. A vida é tua. Engata a primeira. Não olha pra trás. Sempre em frente.