Narciso

Comecei com uns cinco anos.

Cortava a unha e colocava no pote. O cabelo na caixa. Machucava, escondia as casquinhas no cofre. Os dentes de leite no porta-joias. Fotos 3×4 no álbum. Nunca dei roupa nenhuma. Até os tênis pisca-pisca eu guardei. Os diários iam de vento em popa. Ganhei um carro, vendi, aluguei uma sala comercial no centro e montei o primeiro museu.

Veio uma mulher do New York Times, comprou um cacho de 7 anos e meio, minha fase áurea, fez uma matéria meia boca e foi embora. Fui à falência. Taquei fogo em tudo.

Mas filmei, editei, trilha sonora e o escambau. Foi o primeiro documentário sobre um incêndio a atingir 35 milhões de visualizações no YouTube. Lancei o making of, um panorama de tudo que queimou intercalado com meus depoimentos. Deu repercussão. Minha narrativa em primeira pessoa era forte. Cannes, Berlinnale e BAFTA elogiaram. O Oscar desconsiderou, mas o Oscar caducava, todos sabiam.

Na esteira do doc lancei a biografia. A primeira. De propósito deixei histórias de fora pras edições futuras. O pessoal do Johnny Bravo adaptou ideias dos diários de escola e fez duas temporadas bem sucedidas. Parti pro infantil mesmo, os royalties eram mais gordos. Mochila, lancheira, bolsa, estojo, caderno, lapiseira, caneta. Tudo com a minha cara estampada. O Jô me chamou duas vezes, recusei a terceira porque tava sem assunto. O Letterman quis tirar casquinha, mas escolhi o Leno. No oitavo concerto pela fome na África cantei com o U2 no palco, o Bono me abraçou e sussurrou no ouvido que eu tava convidado pra after. O Sheraton veio abaixo, deu pra dar uns pegas numas modelos mas passava por uma fase meio introspectiva, fui pra casa cedo.

O Gilmour e o Waters reviveram o Pink Floyd pro meu aniversário. Dei uma palhinha no teclado, foi bacana. Mais legal ainda foram os três do Rush vindo pra gente tomar um chá e bater uns papos. O Neil Peart me explicou as letras que eu não entendia. Comentei da história multimídia que tava bolando, os elementos de ficção científica, ele ficou maluco. Disse que ia basear o próximo CD na obra, me daria os direitos pra usar como trilha sonora. Como ainda faltava decidir muita coisa falei que ia pensar no caso.

Comecei a ficar de saco cheio dessa vida vazia de sucesso. As pessoas não entendiam a pressão, o quanto você era cobrado pra ser o que era. Comprei uma casa em Fernando de Noronha, fui morar lá, isolado num penhasco tipo o Tony Stark. Um dia apareceu uma senhora, bem velhinha, de bengala. Disse que trabalhou no New York Times. Me mostrou um cacho de cabelo dourado. Falou que era meu. Eu disse que não, alguém mentiu pra ela. Me lembrou do museu, da matéria que fez na época. Recordei vagamente. Pediu um autógrafo, era minha fã de longa data. Na época se enganou, achou que eu não ia dar em nada.

Dei o autógrafo, claro. Todo mundo tem o direito de errar.