O caroço da cebola é vivo [#161]

Dia de estrogonofe, minha mãe disse. Com ketchup. Minha comida preferida.

Peguei uma cebola bem grande, tirei cabeça e pé, descasquei, coloquei na tábua. Quando cheguei nas camadas centrais senti a faca topar com algo duro. Um grito. Nos afastamos. Tinha água quente na chaleira, arma improvável. As lascas cortadas abriram e uma criatura saiu do meio. Se arrastava, deixando um rastro vermelho pra trás.

Minha mãe tacou água fervente no bichinho e ele gritou de novo. Cheguei perto, faca na mão. Era um homem minúsculo, coberto de bolhas, segurando uma perna decepada. Notei o sangue na lâmina. Eu sem querer cortei sua perna. E minha mãe o queimou vivo.

Ela jogou tudo no lixo, pegou as outras cebolas e jogou fora também. No desespero uma caiu atrás da máquina de lavar. Fiquei quieto. À noite, quando todos dormiam, resgatei a cebola fujona, abri com cuidado e descobri uma pequenina mulher adormecida dentro. Acordou. Falava baixo, me concentrei pra ouvir. Contou da escravidão na fazenda, da fuga nas cebolas, da família que veio junto, o marido e os seis filhos. Falei do acidente, não era culpa nossa, não sabíamos. Combinamos que de manhã eu resgataria o saco da rua e procuraria os filhos. Ela chorou durante horas e custou a dormir.

Acordei sem conseguir respirar. Pontadas profundas na garganta e gosto de sangue. Apertei o pescoço, tentei tossir, engolir. Fui pro banheiro, liguei a torneira, a água não desceu. Olhei no espelho. Lá dentro, agarrada às paredes da traqueia, ela barrava o ar segurando um pedaço de vidro, encarando meu reflexo com raiva.

Corri, na ânsia de avisar do perigo. A pequenina queria vingança. Mas caí no corredor, sem ar, sem saber se ela escapuliu pela minha boca, se minha mãe sobreviveu, se os filhos estavam no lixo, se o fato de ter resgatado o corpinho do marido aquela tarde, enterrado no jardim e rezado um Pai Nosso e uma Ave Maria aliviava de alguma forma a nossa culpa.