O corcunda [#58]

Jean tinha as costas arqueadas, uma curvatura bruta e notável.

Era um comparativo estranho o que Junior criara na escola. Dizia que se você pegasse uma xícara redonda e a virasse de lado, veria o formato da coluna torta de Jean. Não havia um sentido crível naquele exagero mas não era algo negociável; Junior era o tipo de menino cujos julgamentos proferidos se tornavam incontestáveis, e não demorou muito o apelido de Xícara pegou. Se sentia particularmente agredido quando as meninas utilizavam-no como se fosse a única palavra pela qual responderia. Jean era o nome que só os professores conheciam e se davam ao trabalho de talhar com os lábios torcidos quando notavam aquela corcunda imensa no fundo da sala e lembravam que nem tudo na vida era belo.

Jean foi cursar a faculdade em outro país. Felizmente não tinha os antigos colegas para lembrar a horrenda brincadeira, mas os novos não pareciam diferir muito nesse sentido. A dor foi imensa quando descobriu que o novo apelido, Notre Dame, fora impingido ao seu esqueleto inválido por aquela de quem não conseguira desviar os olhos nas primeiras semanas de aula. Em defesa de Marie, o apelido não fora cunhado conscientemente; discutiam os desenhos da Disney e o Corcunda de Notre Dame veio à tona no exato momento em que Jean cruzava o refeitório com seu sanduíche matinal, e os olhos perspicazes de Marie se desviaram para o pobre estrangeiro, e uma risada inevitável se escancarou em sua boca, e o grupo ao seu redor compreendeu o motivo da ironia e legou ao garoto o novo codinome. Notre Dame se formou com louvor e uma vez mais fugiu.

Agora um engenheiro diplomado, contava com pelo menos um professor que se afeiçoara a ele a ponto de lhe arranjar emprego numa construtora num terceiro país. Fez as malas, viajou e se assentou no novo habitat, decidido a seguir em frente longe das amargas lembranças. Mas os pedreiros e os outros trabalhadores inventaram um novo apelido quando ele não estava olhando, quando não tinha poder para repreendê-los. Lombada, diziam, e ele ouviu certo dia enquanto tomava café no escritório do superintendente, a janela aberta deixando-o entreouvir uma maldição que parecia inescapável. Lombada labutou por longos anos ali, casou-se, teve filhos de costas largas e retas e se aposentou com os agradecimentos que uma dedicação inabalável conquistaram.

O sonho de viver na praia foi realizado na aposentadoria. Já eram apenas ele e a mulher, e agora uma casa humilde à beira-mar do seu quarto país era suficiente. Havia um cachorro para quem sua deficiência não parecia empecilho, que o seguia todos os dias nas andanças pela areia esbranquiçada. Foi numa dessas que as crianças, inconscientes das agulhas quentes escondidas nas palavras, soltaram o impropério pelo qual se tornara conhecido ali. Olha o Casco de Tartaruga chegando, disseram, enquanto o picolezeiro os afugentava com um brado nervoso. Jean pensou se nem na velhice merecia o respeito de ser chamado pelo nome que ganhou quando veio ao mundo. O defeito parecia muito mais atraente.

Quando morreu a esposa atendeu o pedido de enterrá-lo num quinto país, onde ninguém o conhecia e ninguém teria o privilégio de assertar nova classificação ou nomenclatura. Na lápide, no entanto, pediu que escrevessem: Aqui jaz Xícara, Notre Dame, Lombada ou Casco de Tartaruga. Mas para os que importavam e me amaram eu fui Jean Silva da Costa.