O dentista [#64]

  • 30 de junho de 2014
  • Categoria: Policial

- Abre a boca, Júnior.

Ele abriu. Era uma boca pequena, dentes amarelos, língua esbranquiçada.

- Você não anda escovando a língua, não é? Tem que escovar, dá mau hálito. Esse tártaro também, pode dar gengivite. Tem uma mancha no pré-molar… Trouxe a escova? Quero ver a escovação, acho que precisa dar uma melhorada.
- U uso flor, dotô.
- Mas só usar flúor não adianta, precisa escovar certo, raspar a língua, usar fio dental. E outra coisa, que é isso aqui no fundo? Entre o siso e o segundo molar? Tem um negocinho vermelho mas não é sujeira, parece que foi encaixado.
- A um negos que eu to gardan pa ma tar.
- Quê?

Júnior fechou a boca. – É um negócio que eu tô guardando pra mais tarde.

- Sim, mas o que é? Você por acaso raspou um pedaço do siso pra encaixar isso?
- Raspei, doutor. Agora podemos continuar?
- Calma aí, preciso entender o que você fez.
- Cápsula proteica. Útil se eu tiver que passar longos períodos de isolamento. Mil calorias concentradas. Satisfeito?
- Você só pode estar brincando, Júnior.

Não estava. Mas fingiu que estava. A vida de agente secreto era complicada. Ainda bem que era só o dentista. Se examinasse o nariz ou a orelha chegaria perto de bugigangas mais flagrantes. No fim acreditou se tratar de uma ridícula cirurgia estética. Desde que não desse cárie ele não se importava. Júnior gostou desse. Dos vinte e cinco dentistas que o haviam atendido no passado, era o mais simpático. E ingênuo, ignorante do perigo toda vez que o paciente retornava. A ameaça máxima no consultório era a reprimenda dura de uma língua mal escovada, e o agente secreto dava risada dessa grande ironia.