O mistério se confunde (3) [#156]

 ___algum lugar da Europa, junho de 1911___

Desta vez o dicionário não estava na barriga, e sim na batata da perna esquerda. O assassino conjurou disciplina e frieza para talhar o buraco, escavar os músculos, serrar o osso, plantar o livro e costurar. Harkinen presumia ser médico ou enfermeiro; o acesso a materiais hospitalares deste episódio e do anterior corroboravam isso. Novamente, trabalho cirúrgico realizado post mortem. A vítima, uma lavadeira de 34 anos, não ofereceu resistência. Ela morava no bairro logo atrás das docas, mesma região do estivador, e também foi sufocada.

Solicitou ao comissário de polícia patrulhamento reforçado na área portuária, onde as pessoas sumiam e reapareciam. O criminoso sem dúvida carregava os corpos em uma carroça ou carro, e se dispensava auxílio era forte. Jornais instilaram medo, algo benéfico na opinião do detetive. Muitos passaram a evitar caminhadas noturnas, temendo o nefasto “dicionarista”.

Em casa, após um banho demorado, analisou a evidência do crime. Formato de bolso e publicada na Inglaterra pela Weinstein Co. Practical Dictionaries em 1889. Enfiada no meio uma folha dobrada, amarelada. Sabia do que se tratava antes de abri-la; a peça ausente do exemplar anterior. Como previsto trazia um verbete circulado: Crure (perna). A relação era óbvia. Ávido por nova pista, achou rasgo semelhante no pequeno volume: as páginas 172 e 173 não estavam ali. Repetiu a técnica com grafite para identificar o rabisco.

Voltou à Biblioteca Municipal e consultou os dicionários disponíveis (tampouco possuíam esta edição específica), buscando a palavra que se encontrava entre Capra (cabra) e Cara (querido). De todas as correspondências possíveis uma soou certeira: Caput (cabeça). Caso não desvendasse o enigma a tempo a próxima vítima apareceria com um dicionário na cabeça.

Nas semanas seguintes investigou o quadro de funcionários dos três hospitais da cidade. Ninguém se adequou ao perfil. Passou às pequenas clínicas e o resultado foi o mesmo. Encarregou dois detetives emprestados pelo comissário de vasculhar livrarias e bibliotecas atrás de entusiastas em latim e obras antigas, mas sabia que nada encontrariam; o assassino era meticuloso. Harkinen estava sozinho. E sozinho persistiu, procurando, até que um mês mais tarde, quando a população já esquecera os avisos, o terceiro corpo apareceu. Com a cabeça oca e cheia de significados.


*Este foi o terceiro capítulo da Pentalogia Mistério. Confira os outros:
[1] O mistério se inicia
[2] O mistério ganha corpo
[4] O mistério é calculado
[5] O mistério é desvendado