Papiro

Penso no Hitler. Mas já tá morto. Stalin. Morto também. Saddam Hussein, Gengis e Kublai Khan, Mao, Pol Pot. Genocida é a primeira coisa que vem à mente. Mas não funciona assim. Pra matar tem que tá vivo.

Achei a lâmpada do Aladdin. Não, tô brincando. Achei foi um papiro na tumba de um faraó esquecido. Mentira também. A parte do faraó. A do papiro é verdade. Deu um jeito de se esconder na minha mochila numa escavação em Gizé e só descobri quando cheguei em casa. Desvendar a linguagem criptografada levou um tempo. Cheguei a uma frase que deve ser mentalmente repetida cinco vezes pensando no nome de alguém. Ao fim da quinta invocação a pessoa cai morta. Só funciona uma vez.

É engraçada a sensação que esse poder te dá. Começo a pensar melhor no alvo. Uma morte significativa. Tem tanto crápula no mundo, basta escolher o certo. O cabeça da Al-Qaeda. O chefão da Ku Klux Klan, que ainda existe esse absurdo. O cara da Coreia do Norte, acabar com aquela palhaçada. O Joseph Kony que faz estrago na Uganda, no Sudão, no Congo, com aquelas crianças armadas, meu Deus. Mas as grandes figuras são um risco, você pode criar um mártir e dar mais força ainda ao que elas representam. E se mirar mais baixo? Aliciador de menor, traficante de órgãos, assassino, sequestrador, estuprador. E se for o babaca que me fechou no trânsito? O colega que quer roubar minha vaga? O moleque que me bateu na escola? Egoísmo demais. E maldade.

Tenho que ficar com a cabeça fria. Pensar na família. Como um homem de bem. Nos filhos. Na esposa. Nela. Desde que cheguei do Egito tá estranha. Lava louça sem desgrudar os olhos da janela. O vizinho é personal trainer, bombado, solteiro e conversador. Já vi que tão de papinho quando ela brinca com as crianças no jardim e ele lava o carro ou corta a grama. Tá na cara, só falta pegar no flagra. Isso que dá ficar meses fora. Mulher carente.

Penso naquele sorriso de dentes perfeitos. Nos braços musculosos, barriga tanquinho, bermuda socada da na bunda, coxonas de fora. Nela conversando com ele pelada na cama, dizendo que o marido tá chegando, precisam parar, daqui a pouco ele viaja de novo e continuam, nem sonha, o coitado. Ah, filho da puta. Como é mesmo o nome dele? Fábio. Isso. Fábio Moreira Rocha. Quando percebo já tô repetindo pela terceira vez. Tento parar, canto alto pra interromper o raciocínio e nada. Termino a quinta e desabo. O que que eu fiz?

No dia seguinte, no enterro dele, minha esposa chora mais que todo mundo. Já não me sinto tão mal.