Perfil

Roberta bate na porta. O dono da casa é Adalberto Morristano, viúvo e aposentado, 74 anos. Pede para ela entrar e serve bolinhos de arroz com suco de acerola. Aproveita e apura o básico. Adalberto foi casado por 51 anos com Maristela, falecida há três. Tem quatro filhos, todos morando fora do Brasil, trabalham muito e visitam pouco. Comprou uma gata, a Bela, que ainda não deu as caras. Foi gerente do Banco do Brasil por mais de três décadas. Antes disso trabalhou em galeria de arte, coordenava exposições. Quando o segundo filho nasceu contratou um arquiteto muito amigo e gabaritado, Paulo Henrique Loono, para desenhar a casa. Queria algo diferente.

Roberta a conhece porque o bairro inteiro conta da única confraternização que os Morristano fizeram lá, em 1987. Acharam o lugar “labiríntico” – definição curiosa que se tatuou na parede de algum neurônio com tinta permanente. Quando pediram um perfil na faculdade resolveu inovar. Ao invés de gente, casa. Explica por cima o objetivo. Adalberto diz que pode fazer o tour, fez muito isso, está acostumado. Ela liga o gravador do celular e vira a página do bloquinho de notas.

“Aqui fora eu queria um jardim com essa trilha do portão até a porta. Sempre gostei de verde. A Maristela queria plantar árvores mas nunca deixei, iam esconder a casa. Aí você entra na sala. Pro lado direito é circular, com essas janelonas adaptadas. Colocamos os sofás aqui. É um lugar bom pra conversar. Pra esquerda as paredes se abrem como num cone, levando pro resto da casa. É um convite, entende? Vamos. À direita você passa por esse arco de gesso e entra na cozinha. Dividimos ela pelo balcão. Dá essa impressão moderna, de casa compartimentada. Aqui a mesa, espação pra circular, a geladeira e o freezer, na curva, e depois a pia, o fogão, os armários. O depósito fica atrás dessa porta, olha. Tá vendo as prateleiras de aço? Na época custaram o olho da cara.

“Voltando pro corredor. É nele que muita gente se perde. Pode ver que não é nivelado, é uma curva, um U pouco acentuado. E era tão cheio de quadro que chegava a confundir, mas eu tirei a maioria. No lado esquerdo tem esse vão, tinha um vidro aqui, tiramos. Era um jardim de inverno mas desisti de cuidar, dá trabalho demais. Agora virou a área da Bela. Olha ela ali dormindo, a safada. À direita, aqui na barriga do U, dá pra esse solar. Eu queria um lugar pra ler à tarde, o sol pega de manhã e fica uma temperatura boa depois. Olha, a grama é bem verde, me dá uma tranquilidade. Ali no fundo instalei os ganchos da rede depois que a Maristela morreu, ela dizia que rede era coisa de baiano, vê se pode um negócio desse.

“Voltando pro corredor, você tem essas quatro portas em sequência. A primeira sobe pro segundo andar, é uma escadaria em zigue-zague, três lances. A segunda e a quarta dão pros quartos das crianças. A terceira é um lavabo, ó, bem grande. Vamos subir. O Paulo Henrique colocou esses espelhos na escadaria não foi à toa. Dizia que era simbólico, pra não esquecer quem você realmente é quando sobe e desce na vida. Bonito isso. A Maristela odiava, dava dor de cabeça. Aqui em cima temos esse estúdio enorme, onde ela pintava os quadros. Tá vendo que foi construído em formato de hexágono e do lado de fora parece quadrado? São esses quatro espaços nos cantos, os armários onde guardava as telas, os cavaletes e as tintas. Sobra esse cômodo aqui atrás, meu escritório. Bem empoeirado, faz tempo que não peço pra limparem, não uso mais. Essa mesa de mogno deu uma trabalheira pra entrar. A janela instalamos aqui e não ali pra escapar do sol da tarde.

“E falta a área lá no fundo, vamos descer. Essa escada, cada vez mais difícil. É pior pra descer que subir. Sinceridade. Tem que atravessar o solar. Ó, aqui tem a piscina, tá coberta com essa lona porque ninguém usa. E a churrasqueira, o forno a lenha. Quando um dos desgarrados visita a gente volta a usar. Acho que no fim do ano pelo menos algum aparece, meu caçula gosta de passar o Natal aqui. Essas cadeiras de fio comprei do seu Walter, lá perto da universidade, conhece? Muito bom o trabalho dele. E é isso. No fim é uma casa como todas as outras, com umas estranhezas, tá bom, mas é isso que dá o gostinho, né.”

Roberta agradece e vai embora. Quando senta para escrever não dá liga. Ouve a gravação, folheia o bloquinho, não encontra a abertura. Lembra do professor avisando que muitas vezes a pauta se transforma e se impõe. Começa com uma citação de Adalberto e o texto ganha vida. A casa mal aparece. Outro perfil de gente.

  • Loreci Demeneghi

    Muito bom! Muito real! Muito especial!