Portinari [#194]

- Quem é você?

Ele não fez barulho. Ou a condessa tinha o sono leve ou um alarme sensitivo. Considerou pegar a pistola, mas algo na calma da mulher sugeriu que seria desnecessário. Ela sentou, puxando o cobertor.

- Por favor. Leve o quadro. Só me deixe em paz. Por favor.

Ele virou a moldura de lado, encaixou embaixo do braço, foi até a porta, encarando-a pelos buracos da touca.

- Almodóvar. O meu cachorro. Ele está bem?
- Me perdoe, condessa. Ele ficou no caminho.
- Seu bruto insensível. Meros oitos meses. Não era ameaça alguma.
- Eu não podia arriscar. Não era a intenção. Adoro cachorros.
- Você sabe o que está roubando? Ou só recebeu para fazer o serviço e pronto?
- Eu recebi, sim. Mas não sou ignorante.
- Então sabe que Portinari pintou este quadro retratando a infância no Rio.
- Ele nasceu e cresceu no interior de São Paulo, condessa.
- Muito bem. Sabe por que pedi ao meu marido que gastasse uma fortuna nessa pintura?
- Não, senhora.
- Ele disse que gostava das pipas, meu Junior.
- Seu filho?
- Sim, ele.
- Tem bom gosto.
- Tinha. Faleceu ano passado.
- Me perdoe.
- Imagino que não aceite uma contra-proposta? Algo que faça valer dizer que não conseguiu desta vez?
- Minha reputação não está à venda.
- Entendo. Mas a lógica diz que se foi roubado uma vez, nada impede que seja roubado novamente.
- É verdade.
- E para isso eu poderia contratar alguém cujo trabalho já conheço. Alguém que zela pela reputação.
- Desculpe, condessa. Não é assim que as coisas funcionam.
- O quadro tem valor sentimental. Espero que entenda.
- Entendo. Agora, se me dá licença.
- Só mais uma coisa. Gérard e Avel. Estão bem?
- Viverão.

A condessa esperou dois minutos, olhando a parede vazia, as pequenas sombras dos parafusos projetadas pelo luar esmaecido. Levantou, vestiu o roupão e foi até a cozinha. Encheu um copo de água e bebeu enquanto andava pela casa. Na sala, viu Gérard e Avel desacordados, caídos no tapete persa. Fechou a janela da área de serviço. Sabia que o ladrão estava longe. Acendeu a luz. Em cima da máquina de lavar, encaixado num pequeno orifício da tampa, um cartão branco trazia uma única informação: um endereço de e-mail. Ela sorriu, pensando no desgosto do ex-marido quando chegasse a sua vez.