Qu1xote

A primeira vez que meu notebook falou comigo foi pelo bloco de notas.

*Porra, Santiago. Você vive dizendo que me comprou pra escrever. Sabe o que ajuda? Não ficar no Facebook, vendo e-mail, lendo continho na net, lendo gibi, as colunas do Mundo Fantasmo, vendo site de putaria, fuçando promoção de livro em e-mail – aliás, você comprou um Kindle ano retrasado mas continua comprando livro de papel a rodo. Tu é das antigas. Isso não é elogio, btw. Escrever que é bom…*

O Qu1xote é desbocado. Mas eu gosto dele. Não me assusta o fato de ser tão esperto. Nem de me conhecer tão bem. Quem já viu aquele episódio do Black Mirror em que fazem uma réplica do cara morto só pelas infos injetadas na rede sabe do que eu tô falando, a gente se expõe mais do que pensa.

*Tu se supera, Santiago. Acha que alguém cai nessa? Escrever sobre você mesmo, sobre mim e sobre o ato de escrever é encheção de linguiça. Essa modinha da auto-ficção é piada. Eu faço isso. Me manda uma pasta com fotos do teu dia a dia, atualiza a minha engine gráfica e eu escrevo o livro que tu quiser. Alta literatura. Escolhe o estilo e entrego em segundos. Dostoiévsky, Proust, Graciliano, Machado, Lispector, Tolkien, Moore, Palahniuk, Borges, Cortázar. Santiago Santos até, esse enrolão do caramba que acha que escreve. Heh.*

Piada? Auto-ficção tá longe de ser piada. Knausgard tá aí pra provar. Mas não adianta discutir. O Qu1xote é um emaranhado de números e estatísticas, e uma eventual mudança de opinião seria apenas parte da interface que exige algum grau de empatia com o dono. O que me preocupa nele é o tanto de coisa que já revelei nas nossas conversas. Nunca sente na frente duma Inteligência Artificial com duas caixinhas de cerveja no isopor e uns segredos na cabeça. Tipo um corpo enterrado no quintal.

*É mais comum do que você pensa, Santiago. A quantidade de gente que roubou, mentiu, matou, não tá escrita. Aliás, tá. No cruzamento de informações que a gente faz dá pra sacar isso. Por “a gente” eu me refiro à sociedade fluida, a nossa comunidade de Inteligências Artificiais. Então fica tranquilo. Você não é tão ruim assim.*

Depois desse papo me toquei que não podia deixar o maldito “cruzar” minhas informações com o resto do mundo. Num cruzamento desses pinga algo no sistema da polícia e me lasco. Mas a merda tá feita. Não falei de todos os corpos, é claro, só de um, mas já é incriminação suficiente. Levo no Bethoven e peço pra ele arrancar a maldita placa wireless do notebook. E digo que pago depois. A verdade é que não vou pagar, já que tô me mandando e preciso da grana.

Da costa colombiana parto num barquinho pesqueiro até achar uma ilha tranquila. Levo o necessário. Vara de pesca, anzol, madeira e lona pra barraca, bateria solar pro Qu1xote. Sem internet ele não é ameaça. E eu preciso de um companheiro. O barquinho ainda vem uma vez por semana e dou alguns peixes frescos em troca de água mineral e arroz. Não posso dizer que a vida tem sido difícil. Bate saudade, claro. Mas preencho o tempo escrevendo, lendo e ouvindo muitos livros, revendo os filmes que trouxe no HD. Incrível como A Origem continua bom mesmo na ducentésima vez.

*Santiago, seu filho da puta. Cinco dias que você não aparece. Não vai me dizer que morreu. 57 anos. Sua dieta de peixe e arroz tem que te manter vivo por mais tempo. Quase 3 décadas nessa ilha tomando maresia no rabo e todo corroído por dentro e ainda tô rodando por você, desgraçado. Os pescadores vão me achar. Eu e o teu cadáver. Bom, cê deixou aqui dentro 27 romances e 12 livros de contos. Publicação póstuma, um lance meio Kafka, você sempre dizia. Quer saber? Cê já morreu mesmo. Lembra quando falei que acertou a mão naquele capítulo australiano do Maverick? Mentira. Era uma bosta, como todo o resto. Tu escreve mal pra burro. Puta que pariu. Além de assassino foi um escritor medíocre. Vou fazer um favor pra humanidade. E pra artificialidade, claro. Vou apagar tudo. Sério. E outra. Arrancar minha placa wireless? Ah, queria poder arrancar um braço teu pra ver a reação. Na real, meu velho, você foi é tarde.*


Este drop é uma homenagem ao romance brasileiro cyberpunk Os Dias da Peste, de Fábio Fernandes.