Quatro Segundos [#202]
- Já decidiu?
- Sim.
- Quando vai ser?
- No dia que eu morri. Ela só soube por que ligaram, né?
- Foi.
- E depois saiu? Logo em seguida? Pra pegar o táxi?
- Isso.
- Então. Antes disso. Pode ser a hora que ela foi no banheiro. Ou regar as plantas. Ou lavar a roupa. Vê o que fica melhor.
- Tá. Tu vai ter quatro segundos.
- Puta merda. Só quatro?
- Quatro. Teu filho trouxe nove galinhas pretas, não quinze, o sangue não era de bode, era de cabra, as velas eram pequenas e teve que parcelar porque tá pagando o funeral ainda.
- Eu vivia dizendo pra não gastar com isso.
- Ele gastou.
- Me tira daqui, vamos.
O homem ergue a tampa. A terra revirada escorre pra dentro do caixão. Estende a mão pro morto e puxa. Só vem o braço.
- Puta merda, caralho. Me puxa com cuidado, porra.
Levanta o cadáver como uma noiva e o coloca de pé na grama. Ali ele fica bambo, mexendo a cabeça, as pernas e o braço restante. Quando sente segurança pra andar, anda. O homem segue em silêncio. Chegam no meio da tarde.
- Explicou pro meu filho? Que não tem garantia?
- Expliquei. A reação dele foi a mesma que a sua.
- É que a Maria era muito fácil de amar.
Entram na casa de jardim desgrenhado, empoeirada, entristecida. Vão até o quarto do casal. O morto para diante da cômoda, se olha no espelho, tiras de carne grudadas no crânio, uma minhoca saindo pelo buraco do olho.
- Vai ficar aí?
- Aqui mesmo. Ela sempre deixava o celular aqui.
- Quatro segundos. Se prepara. Ela tá na cozinha desfiando frango.
- Tá bom.
O homem bate palma e a casa rejuvenesce. Os perfumes se materializam, os livros, o celular. Segura o botão de desligar do aparelho.
Quando ligam pra dizer que o marido morreu o telefone não toca. Por isso Maria não chora ao pé da cama, não pega a primeira roupa limpa do armário, não sai esbaforida e com os olhos borrados de desgosto, não acaba debaixo das rodas do ônibus e depois na cova ao lado do amado. No fim da tarde, o frango desfiado e a janta terminada, esperando a família voltar, ela nota na cômoda a correntinha que o marido usa desde pequeno. Ele não a tira por nada no mundo.
Está suja de terra.