Raimundo [#203]

— Vem cá, Otávio. Chega perto, homem, dói pra falar.

— Não fala. O médico avisou.

— Fica quieto. Me ouve. Me ouve.

— Teimosa.

— Eu tô indo. Não vivo mais. Não guento. Não quero. Saio dessa cama fedida, ver o que tem do outro lado, tá ouvindo?

— Besteira, só fala besteira.

— Presta atenção, homem. No que tenho pra dizer. Nosso filho.

— Aquilo não é filho meu.

— É sim. É filho teu sim que tu botou aqui dentro e eu pari e se não é teu é de Deus e é melhor ainda. Tu vai buscar ele. Em Campo Verde, Sorriso, Tangará, onde quer que ele se enfiou. Tu vai buscar, dar uma sova, enfiar em casa e só vai deixar sair quando tirar o trem ruim do corpo.

— Aquilo quer melhorar não, Jussara.

— Olha aqui, homem. Tu não chama teu filho de aquilo de novo ou levanto dessa cama e te dou um tapa na cara nem que seja a última coisa que eu faça, tá entendendo? Lá no quarto, perto do pé da cômoda. Tem um azulejo solto. Vai achar dinheiro. Tá ouvindo? Tu vai pegar isso pra buscar ele.

— Daonde tu tirou dinheiro, mulher?

— Da tua carteira, ora. Ou achou que ia torrar tudo com cachaça e puta. Não, senhor, eu tirei toda vez que tu chegava engambezado, tirei sim.

— Tá ficando louca.

— Doente e louca. Mas não finge, Otávio. Não finge que tu não passou mais tempo com a putaiada do Porto que comigo em casa. Que não ia comprar guaraná pra ralar na grosa no Mercadão só pra ficar de olho nas vendedora. Não finge que tava nos boteco do Dom Aquino jogando sinuca porque eu mesmo fui um monte de vez te procurar e tu não tava. Não sou trouxa, seu vagabundo. Admite, admite agora, na minha cara, tava se engraçando com mulher da vida ao invés de cuidar do que é teu.

— Jesus Cristo. Tá com o demônio no corpo.

— Tô sim. Uns cinco.

— Ave Maria. Afe. Tá bom. Eu ia lá de vez em quando.

— De vez em sempre.

— É.

— Então presta atenção. O Inácio da farmácia, sabe? Um dia tu tava com tuas nega, eu fui e me meti com ele. Fui sirigaita mesmo, uma noite, no meu direito.

— Ai, ai!

— Que ai que nada, homem. Pode ir lá, pode esculachar o coitado porque me ofereci mas era casada e ele sabia. Só deixa vivo. Tá entendendo? Deixa vivo que agora tá ele casado e precisa criar o filho. Criar bem pra não ficar solto igual o nosso, que tu vai buscar e enfiar dentro de casa e endireitar.

— Ai, diacho! Quer infernizar o pouco de vida que eu tenho sobrando?

— Olha aqui. Vem cá. Senta. Sem resmungar. Me dá a mão. Te amo, bicho ruim. Desde que a gente se cruzou na festa da madrinha Aurora naquele casarão na Lixeira, lembra?, eu te amei. Tu nunca quis ouvir, eu nunca quis falar, mas falo agora ou não falo mais. Me fala que tu me amou, criatura, sei que é verdade mas preciso ouvir da tua boca pra ir em paz.

— É claro que eu te amo, Jussara.

— Isso. Limpa o olho, homem que é homem não derrama choro não. Chama o doutor. Tô pronta. Se operar e não arresolver eu tô pronta. Já prestei minhas conta.

— Ai, mulher brava!

— Vai, Otávio. Chama o doutor.

— Já vou, já vou. Deixa eu ficar mais um pouco. Deixa eu segurar tua mão. Tá fria. Fria demais da conta.

— Tá quente. A tua tá quente.

— Ai, inferno. Pra que inventar de essa doença zangada aparecer na minha mulher, ô Deus.

— Não chora. Aqui. Segura a outra também. Sou tua, tá vendo. Sou tua. Não me esquece.

— Como é que eu te esqueço, criatura?

— Quando tiver com as vagabunda no braço vai esquecer, vai sim. Mas te perdoo. Se tu buscar o meu filho. Se tu buscar o teu filho. Se tu buscar o Raimundo. Que tá perdido na vida. Que tá longe daqui. Que não sabe que tô no Santa Rosa, que tô indo embora. Limpa esse choro, homem. Chama o doutor.

— Ai.

— Chama o doutor. Tô pronta.