Rawlena s01e01 – Lasanha e gato

Rawlena caminhava com passos curtos pelos corredores residenciais do nível 119. Sabia que abaixo do centésimo não havia equalizador e o ar ficava mais escasso. Guardar o fôlego pro momento certo era muitas vezes a chave em extrações tão abaixo do nível terreno. Quase nunca aceitava trabalhos ali, mas a grana andava curta e podia aproveitar a viagem pra checar o irmão, que vinha caindo desde que perdeu o emprego, a família e qualquer noção da realidade.

Administrava os atalhos da lente na palma da mão esquerda. Apertou a pele e o mapa se materializou. Parou diante de uma das centenas de portas no corredor. Apertou outro ponto da mão e o infravermelho revelou um quadrado de cor intensa perto do chão, atrás de uma segunda parede, e as formas e cores de um corpo humano sentado perto da entrada. Abriu o cano do estojo e o encostou no identificador da porta. Em segundos os nanorrobôs derrubaram a segurança e a porta deslizou pro lado.

João comia lasanha no sofá, em nada afetado pela presença dela. Rawlena entrou, pistola apontada.

— João Matias Souza, sabe por que estou aqui?

— De burro nunca me chamaram. Posso acabar de comer antes?

Ela foi até a outra ponta da sala e olhou pela abertura da cozinha. O ponto de calor vinha do forno, agora desligado. O resto do apê estava vazio.

— É bolonhesa. Quer um pedaço? Tem metade aí em cima da pia.

— Vamos logo com isso, João. Tenho mais o que fazer.

— Só um minutinho.

Ela sabia o que viria na sequência. Ele parecia não saber: seu transporte até o nível 34, onde Tia Anatólia começaria conversando e acabaria com pedaços dele pelo chão do apartamento. A hierarquia só funcionava porque quem estava abaixo da Tia temia o que poderia acontecer caso não seguisse as ordens. Rawlena não sabia qual a transgressão do homem. Era importante que não soubesse, facilitava o trabalho. Mas ela podia supor. E dada as bolsas amarelas sob os olhos dele, a suposição era de que a noropía que deveria revender tinha acabado na sua própria corrente sanguínea.

João assistia um canal de documentários antigos. Na tela, um grupo de mergulhadores vestido com roupas emborrachadas e tanques de oxigênio investigava manchas num recife de corais. Rawlena também adorava docs antigos. Havia saído uma única vez da cidade, e não viu o mar.

— Tem alguma coisa que eu possa fazer pra você não me levar? Pra dizer que não tinha ninguém em casa?

— Não. Meu serviço não é esse.

— Eu sei que não é. Mas não custa perguntar.

Ele raspou o molho com o garfo, depositando-o em cima do último pedaço. Enfiou na boca.

— Pronto agora? Se colaborar vai ser muito mais fácil.

— Pronto. Só vou deixar o prato na pia.

— Deixa aí no sofá. Vamos, não força a barra.

— Se eu deixar o prato aqui, meu gato pode lamber. Ele tem intolerância a qualquer coisa que não seja ração.

— Gato? Você tem um gato?

— Foi difícil, confesso. Gael, querido, venha cá, venha cá.

Ela ouviu o miado do gato, e então viu ele saindo pela outra porta, a do quarto, e se aproximando. Era um persa branco, de narizinho redondo e olhos escondidos na nuvem de pelos. Ele veio devagar, se enroscou nos pés do dono. Mas ela não notou a mancha de calor do animal no infravermelho. Não era de verdade.

— Você pode cuidar dele? Se ficar aqui sozinho, vai morrer. Ou sabe-se lá o que pode acontecer quando vierem limpar.

— O bicho teria que estar vivo pra morrer, você sabe disso.

— Não me impede de gostar e querer o bem dele.

— Eu volto aqui pra buscar, ou mando alguém. Tá bom? Agora você vai me ouvir? Vamos andando?

João abraçou o gato e o largou no chão. Saiu pela porta e foi andando pelo corredor.

Em seu trabalho, Rawlena nunca havia encontrado alguém tão resignado. Quando ela buscava um alvo, a pessoa sabia o que sua presença significava. Por isso atirava, corria, lutava, se esgoelava. Reagia de alguma forma. Se fosse um serviço tranquilo, qualquer um poderia fazer, e não apenas pessoas com suas habilidades.

No fim do corredor, diante da plataforma, João parou e ficou olhando fixo pra linha luminosa na parede que mostrava sua posição. Levaria alguns minutos ainda. Rawlena pensava em desacordá-lo e levá-lo arrastado, como era o costume, mas não parecia necessário. Por precaução, juntou suas mãos nas costas e as prendeu com um lacre. O homem não reagia. Ela falou uma coisa ou outra, ele nem virou o rosto. Então segurou suas bochechas e o obrigou a olhar pra ela. Quando ele abriu a boca, um miado.

Ela voltou correndo, xingando, ignorando o ar rarefeito. Quando chegou no apartamento, procurou pelo gato. Seus scanners logo indicaram que não estava ali. Incapaz de puxar pros pulmões uma quantidade decente de ar, se escorou no braço do sofá. Fechou os olhos, controlou as inspirações. Não queria desmaiar, não agora.

Por que Tia Anatólia não a avisou que o homem tinha dinheiro suficiente pra comprar um pacote de upload de consciência? Por que alguém com acesso a isso trabalharia pra Tia Anatólia, pra começo de conversa? E agora um fugitivo nas mãos. Ou melhor, longe delas.

Olhou o prato de lasanha largado no sofá. Limpinho. Lambido até o último resquício.