Resistência online [#117]

O telefone não toca. Estou aqui parado há mais de meia hora, olhando pela janela. Os ouvidos acostumados com a barulheira filtram a gritaria dos camelôs e megafones. Ouço motores roncando, uma mãe gritando com o filho, um tiro distante, uma TV. Moro no segundo andar de um hotel abandonado, tomado por um pilantra, que eu pago pelo quarto e pela segurança. Aqui tudo pertence a qualquer um que tenha homens, armas e vontade. O governo não existe depois das barreiras que ergueram na entrada do complexo. Demora pra se acostumar com a algazarra lá fora, mas nada me faria largar as entranhas sujas e fervilhantes desse refúgio.

Vira e mexe um desgraçado me espana os nervos à espera de um telefonema que não vem. Porra, eu vivo disso, preciso trabalhar. O sujeito é assessor do secretário de finanças. Custei muito pra convencê-lo a abrir o jogo. Ficou mais amigável agora que precisa do dinheiro pra bancar trocentas cirurgias da mulher acidentada. O relatório anual de gastos públicos está pra ser anunciado. Folhas de pagamento, notas de serviço, investimentos, remanejamento de verbas, licitações. Ele pode me apontar o que é historinha pra boi dormir naquilo tudo, que nota é fria, o que virou um maço gordo dobrado no bolso de alguém.

É esse tipo de informação que meus leitores procuram. É por isso que pagam, colaboram. Querem saber o que realmente acontece, metade pra exigir os direitos e manter o olho aberto, metade pra ver o circo pegar fogo. Sou um jornalista a serviço da verdade, pura e simples, e parece que as investidas têm surtido efeito. Se der bobeira desapareço e como terra. Mas não importa a pressão, o quanto a maldita máquina gaste e se esforce pra cegar o povo, eu não pretendo parar tão cedo. Não é pelo dinheiro que faço o que faço. Às vezes parece ser por tudo menos isso.

O telefone toca. Ele tem aquela voz sofrida e fina de quem nunca retrucou ordens. Provavelmente o motivo de chegar onde chegou. Me passa duas irregularidades: uma praça superfaturada e a manutenção imaginária de um trecho de estrada no interior. Relaciona as empresas contratadas e os cabeças que respondem perguntas. Transfiro uma quantia razoável pelas infos. Não muito, pra não demorar a me procurar novamente, nem pouco, pra que de fato o faça. Dou uma olhada nos novos comentários no site, a quantidade de respostas positivas, encorajadoras. O time de hackers que o mantém no ar trabalha duro. Não é à toa que come a maior parte do que ganho. Procuro o contato de alguns engenheiros respeitados, atrás de munição pra bolar as perguntas certas. Jornalista preparado é tudo.

Apanho a identidade falsa, que me permite acesso ao outro lado da cidade. Guardo as seringas cheias no bolso, drogas sintéticas que remodelam o rosto e me transformam no que não sou. Desço a escadaria sentindo o bafo quente e viscoso de suor e fumaça. Entro no carro, guiando pra longe, pra desvendar as falcatruas sob as quais essa cidade se manteve por tanto tempo, muito mais tempo do que deveria.

Nos vemos na próxima manchete.