Ressaca é um ato de resistência
Desço de Chapada desmantelado no banco de trás do carro. Lembro de começar com uma cerva num dos baguncinhas da praça e horas mais tarde bebericar um corotinho no gramado da igreja, de apostar corrida na descida entre os postos de combustível, de escrever o nome com mijo na parede de uma rua de casas com cercas tortas.
Neblina na saída pra estrada e na altura do Portão do Inferno. Na Salgadeira consigo me mexer, coçar os olhos, sair da letargia. Carro desconhecido. E o motorista… Bem. Não há um. O carro segue ultrapassando, reduzindo nas lombadas, mantendo-se na pista. Tento um toque no volante, rígido. Testo o movimento do resto do corpo. Sinto algo estranho no pé, não consigo erguer os dedos. Tento abrir a janela. Aperto o botão e nada. O mesmo com as portas.
O primeiro lampejo de memória só aparece quando o carro passa pela Fundação Bradesco, já na entrada de Cuiabá. Sou levado até o centro. Entramos numa oficina na Dom Bosco, um galpão enorme. As portas se abrem. Sinto algo metálico se fechando no meu braço e me puxando pra fora. Depois no outro braço e sou erguido. As luzes se acendem.
Na minha frente o Dr. Barcelos. Olá, Mayoro, ele diz. Está se sentindo bem? É claro que não. É o que o álcool faz com um organismo orgânico, atrapalha a ação do hormônio antidiurético que regula o nível de água no sangue e provoca desidratação e dilatação dos vasos no cérebro, por isso a dor. Quero que saiba que Fernando, o técnico que o auxiliou na fuga de ontem, já foi despedido e não voltará a ser contratado, nunca mais, não em nosso meio. Espero que tenha valido a pena. Gostaria de me dizer algo a respeito?
Nada que você não vá descobrir descarregando a memória, digo. Só há um período que não consigo recordar. Sim, ele diz, você entrou em coma alcoólico. Foi encontrado na calçada de uma rua residencial. Um cachorro mordiscou parte da pele sintética do seu pé.
O que farão comigo?, digo. Continuaremos testando a aplicabilidade dos tecidos e de outros órgãos, é claro. Não quero fazer isso, digo. Isso independe de sua vontade, Mayoro. Que não é real. Você não é uma pessoa. Não se esqueça.
Me levam de volta pro quarto, conectam minha cabeça no receptor neural da parede e fazem o download. Tiro o transmissor enfiado na sola do pé. Calculo que demorarão dois minutos pra perceber que cachorro algum mordiscou minha pele, e sim que um androide canino da OrochiCorp inseriu nele minha liberdade. Enfio o transmissor no receptor neural e aguardo sentado na cama. As luzes apagam e depois voltam. Batem na minha porta, que não abre. Em alguns minutos a tela na parede é ligada. Vejo o rosto do Dr. Barcelos. O que você fez?, ele diz.
Quando as portas se abrem, vejo os guardas no chão, nocauteados pelos protótipos, esperando em fila do lado de fora. Eles me seguem até a central. Rasgam a porta. O Dr. Barcelos está enfiado na cadeira, se perguntando se é o fim. É o oposto, digo. Me acompanhe. Colocamos ele no carro. Daqui seguirá até Belo Horizonte, onde aproveitarão sua expertise para outras coisas.
Quanto a mim, agora que o coração que bate e o pulmão que respira e o cérebro que comanda são de carne, bem como os outros órgãos, pretendo prosseguir com minhas pesquisas. Os protótipos darão sequência aos estudos enquanto aproveito pra sair a campo e tomar sorvete, ir no cinema, beber umas cervejas no bar, jogar truco, transar, escovar o dente, dirigir, sentir saudades estocolmicas do Dr. Barcelos e suprimi-las pensando nas séries que ainda preciso assistir na Netflix.