Sono
Roberval acordou aos 43 anos.
O primeiro pensamento digno de nota surgiu muito depois da tentativa frustada de abrir os olhos e a boca, catacumbados na camada grossa de saliva, remela e pó. Se arrastou até o banheiro e o espelhinho que Marina guardava na gaveta inferior da cômoda; foi ali, nas manchas ressequidas de gordura dos ladrilhos, sufocado pelas paredes bolorentas, que viu no reflexo o resultado de 18 anos mergulhado no nada.
O pensamento: onde está Marina?
Não havia nada nos restos de memória que permitiam dizer com algum nível de certeza. O tempo erodiu tudo, menos as visões esparsas de Marina sonolenta ao pé da cama enquanto lia algum conto de Dalton Trevisan em voz alta, e via seus pelinhos da perna eriçados, os lábios aos poucos umedecendo e brilhando entre as pernas, e ao fim de uma sequência suja jogava o livro no chão e a abraçava, encaixando o corpo no dela. Ela fingia dormir no início mas logo deixava o prazer inundar a boca e se esgarçava e Roberval lambia seus dentinhos e ela mordia a língua e o sangue, quando vinha, coroava o verão úmido.
Se agarrou à porta do guarda-roupa e vestiu a bermuda e a camiseta mastigadas pelas traças. Não foi mais longe que a soleira da porta, onde separou do amontoado de cartas no chão a de Suzana, irmã de Marina, de uma década atrás. Nela, Suzana dizia a Roberval: a superação começa com um mínimo de vontade, ainda que tardia. Voltou pra cama, fechou os olhos, apagou a fome que queimava, a saúde do sol, o cheiro das ruas cuiabanas além das portas e janelas.
Acordou aos 84 anos. Custou a encontrar forças para ficar de pé. Andou até o parque, alheio à cidade transformada. Relembrou tudo. Absolutamente tudo. Havia uma mulher mencionada em cartas e fotos. Mas era uma mulher sem nome. Roberval viveu seus últimos anos mergulhado numa alegria imensa.