Suflê é pra quem ama

Chegou cantando pneu. Ela saiu secando as mãos numa toalha de pano, avental de cozinha sujo, nem esperou ela abrir o portão, pegou suas mãos úmidas, disse Desculpa e pediu pra entrar. Ali, aos olhos de todo mundo na rua, sabia que apelava pra única coisa que restava apelar, a vergonha que ela não gostava de sentir na frente dos outros.

Entrou, foi direto na cozinha, tomou um copão de água. Ela perguntou quanto ele tinha bebido, ele disse que não lembrava (lembrava). Ela pediu pra ele ir embora, Por gentileza, faça o favor de me ir embora, foi assim que ela disse, com uma cadência doída que começou a trazer uma vontade de lagrimar pra perto do seu nariz. Encheu outro copo, tomou. Disse que ia sim, mas queria que ela ouvisse primeiro.

Ela disse Não aguento mais, não quero ouvir mais nada, Se continuar desse jeito vou ter que chamar a polícia, colocar portão eletrônico na casa, Não dá mais. Ele pediu de novo e de novo até que ela sentou no banco da cozinha com os olhos vermelhos e disse que se ele falasse o que queria e fosse embora ela concordava, desde que fosse a última vez; essa era uma das muitas últimas vezes mas fingiam que era a primeira, não valia a pena alongar a discussão apontando essas incoerências que rondam o fim. Aquilo lhe deu um lapso de esperança — um lapso breve —, porque na bancada da cozinha viu o ralador e a bunda duma abobrinha e a farinha de trigo e a cenoura e os queijos. Ela tava fazendo suflê de abobrinha. Suflê de abobrinha foi a primeira coisa que ela cozinhou pra ele quando se conheceram. Ela disse que fariam o que mais gostavam de comer, cada um, pro outro. Ele fez estrogonofe. Ela o suflê.

Ele disse Não acredito nisso, você tá vendo outro, ele tá vindo aqui, é isso, Achei que você fosse me dar mais tempo pra consertar as coisas. As coisas acabaram, Você tem que seguir seu rumo, Eu tô seguindo o meu, Ele é professor, tem horário fixo, não vive na estrada, não bebe, não fuma e você sabe que eu preciso disso, Se me ama mesmo como diz que ama vai entender que eu preciso disso, eu preciso disso, e começou a chorar de verdade e ele nunca aguentou ver ela chorando e lhe deu um abraço (ela não devolveu) e dali dirigiu pro Garcia, ainda era cedo, quando chegou o pessoal da cozinha tava se arrumando, passando pano, mas o Garcia era amigão e entendeu quando ele apareceu daquele jeito e serviu cerveja e foram duas garrafas e depois voltou com o suflê de abobrinha num prato, salpicado com parmesão, e ele garfou aquilo e foi comendo vorazmente, Garcia olhando, perguntando se tava tudo bem, se era só aquilo, se precisava que alguém o levasse pra casa e ele disse que não, que conseguia dirigir e dirigiu.

Passou a noite vendo reality shows de culinária, e nesses momentos que a gente se apega a qualquer coisa, agarrando o controle remoto ou o braço do sofá ou a própria mão ou o celular desligado, achou que nenhuma das receitas usar abobrinha era um bom sinal.