Terra [#219]

Não era nada. Um pedaço de terra. Um punhado de pó.

Foi refúgio quando a montanha ruiu e as pedras se espalharam, sombras para os abutres. Foi abrigo quando a leoa pariu e deu de mamar aos filhotes. Foi comida quando o mato cresceu e virou pasto. Foi sustento para a família que plantou e viu vicejar. Foi chão da casa que construíram para se proteger do vento e da chuva. Foi tapete para o cachorro que cuidou do rebanho. Foi cama para os bois, porcos, galinhas.

Foi pista de corrida para os meninos enquanto cresciam. Foi ringue para a briga entre pai e vizinho a respeito da cerca. Foi tormento quando a mãe tropeçou e machucou as costas e nunca mais andou direito. Foi alívio para o homem que chegou cansado das andanças e fugido dos crimes. Foi mortalha para o pai e o vizinho que o derrubaram a custa de muito sangue. Foi cemitério depois do enterro. Foi novo sustento para os filhos que adubaram. Foi dinheiro para os netos que fincaram a placa e aceitaram a proposta.

Foi canteiro de obra para a construtora, que cavucou e aplainou. Foi fundação para o prédio que ali se ergueu. Foi lar para as 58 famílias empilhadas e apertadas. Foi cenário de documentário da vida em sociedade para o projeto da escola. Foi palco de cenas românticas, de brigas, de partidas de futebol, de churrascos, de conversas e reencontros. Foi lugar interditado e evitado com a estrutura condenada pelo tempo. Foi fumaça e fuligem na demolição. Foi motel quando o casal se enfiou no meio do mato. Foi consolo quando o expatriado sentou nos escombros e chorou de saudade. Foi inferno ao desovarem o corpo. Foi notícia ao encontrarem. Foi maldição ao ser evitada. Foi mentira e maquiagem na imobiliária. Foi ressurreição na venda.

Foi alegria para a nova família. Foi chão para a nova casa, tapete para o novo cachorro, pista de corrida para as novas crianças. Foi esperança para os novos donos, novas vidas, novos tempos.

Foi tudo até voltar a ser nada. Um pedaço de terra. Um punhado de pó.

  • Mario Bilégo

    Muito bom cara!
    Me fez pensar metaforicamente.
    E eu?
    Que tanto de coisa vou ser até voltar a ser nada?