Tia Jerusa

Uma época a tia Jerusa alugou uma casa no fim da rua. Eu visitava toda tarde. Ela fazia chá mate com canela e guardava na geladeira pra quando eu chegasse, mas não me deixava ficar muito tempo porque sempre tinha trabalho pra fazer. Escrevia cartas, mas isso eu não via, só ela folheando um livrão dos correios pra pegar endereços. Minha mãe dizia que não era emprego coisa nenhuma, era só um jeito de justificar ficar em casa à toa. Descobri bem mais velha que ela ganhava dinheiro como funcionária fantasma da universidade. Nunca ia lá, mas o salário pingava todo mês na conta.

Eu gostava de perguntar as coisas pra ela porque as respostas eram sempre diferentes das que eu recebia dos outros. A nuvem não era vapor de água condensado, era uma sociedade de seres que moravam nas montanhas e saíam em passeios com a família pra conhecer as coisas, e quando cansavam eles choviam e caíam no chão e voltavam por baixo da terra pra casa. Carro não era um maquinário com motor hidráulico e várias pecinhas em funcionamento, era um parente distante do boi que usava armadura. Árvore era velho que cansava de viver e ficava mais de um ano sem abrir a boca. Televisão era um caixote que recebia pelo fio da tomada um monte de pessoas do tamanho de bactérias que pintavam na tela as imagens. Catarro era coisa ruim que a gente tinha pra dizer e não dizia e acumulava e saía pelo nariz limpando a gente por dentro.

Tia Jerusa insistiu nisso até o fim. Quando tava no hospital e eu já tinha mais de trinta anos e sabia diferenciar uma coisa da outra, ela disse que o que tinha não era câncer, era só um pedaço de frango que ficou plantado no estômago e foi adubado com muito mate e cresceu e agora tava bicando ela por dentro. Em todos os anos de convivência, nunca a vi admitir qualquer coisa que fizesse sentido, que fosse lógica, racional, cientificamente comprovada. Ela achava uma graça danada de tudo e ria que se acabava, igual criança. Talvez por isso fizesse sucesso com elas. E fosse evitada pelos adultos.

Um dia o Rodolfo, que comprou a casa em que minha tia morou, disse que encontrou um papel escondido embaixo de um azulejo na reforma. Presumi que fosse da minha tia. Nele, tinha um trecho copiado à mão de enciclopédia ou livro escolar, uma descrição da chuva, os pormenores do fenômeno da precipitação. Todas as palavras estavam riscadas, uma a uma, com dedicação funda e retilínea. Imaginei minha tia, sentada na mesa, escrevendo todas as explicações chatas e óbvias pras coisas do mundo e as aniquilando brutalmente com a ponta da caneta, rindo de si, encontrando um alívio ligeiro pro desespero classificativo do pensamento humano. Era a cachaça dela.