Tigresa [#197]

A cachorra voou, caiu e ficou estatelada no asfalto, as quatro patas quebradas. O carro travou numa freada de fumaça e zunido. A van bateu no para-choque. Vimos tudo do ponto de ônibus. Duas mulheres pediram pro motorista ir pra frente e recolheram a coitada esmilinguida. Desacordada, respirando pesado. Ali! Ali!, gritou um menino. Um homem de boné vermelho olhava de cima do viaduto e sumiu quando apontaram. Peguei o celular e liguei pra uma conhecida, a Rose, que tem uma ONG que cuida de animais abandonados, pedi pra avisar alguém. No fim foi ela quem apareceu, colocou a cadela no carro e levou.

Nesse meio-tempo de espera descobrimos que o homem de boné era só um pedestre, curioso com o barulho da freada, e não viu se alguém jogou a cachorra. Uma mulher no ponto gritou que era uma pouca vergonha, óbvio que alguém fez aquilo, o muro do viaduto era muito alto, ela não ia conseguir subir, tadinha, olha o tamanho dela, é miúda, é vira-lata mirrada. Tinha umas manchas alaranjadas no corpinho marrom e uma menina chamou ela de Tigresa. O nome ficou.

Fui com a Rose. O veterinário atendeu, disse que ela tava mal, múltiplas fraturas. Uma queda de dez metros de altura, mesma coisa que jogar do segundo andar de um prédio. Se sobrevivesse, talvez não andasse mais. A Rose chorou vendo aquilo, falando que já tinha acontecido antes com outro cachorro. Cheguei atrasada no trabalho, expliquei e o chefe ficou comovido, mas disse que eu não podia me envolver assim. No dia seguinte visitei a Tigresa. Ela tava mal, tomando soro na veia, as patinhas imobilizadas, os olhinhos abertos fixos na parede.

Lancei uma campanha feroz no Facebook contra o maltrato de animais. Muita gente apoiou, juntou voz. Alguns disseram que era besteira, tinha muita criança passando fome no mundo pra se preocupar assim com bicho. Gente, que culpa eles têm? Nunca descobriram quem jogou a Tigresa. Mas ela melhorou, doaram dinheiro pro tratamento e voltou a andar, mesmo que mancando. Acabei me afeiçoando tanto à cachorra que peguei ela pra criar.

Quando chego do serviço deito ela no colo e faço carinho, olhando praqueles olhinhos pretos, pensando em como é que alguém teve a coragem de jogar um animalzinho indefeso desse lá de cima. Aqui em casa virou família, é minha filha. Dorme na cama, come do meu prato, desisto de sair pra não deixar sozinha. Se tiver que me jogar na frente de um carro pra salvar ela eu me jogo. Será que esse povo não tem sentimento, não tem coração? Tô cada vez mais acreditando no que a Rose me disse. Bicho é melhor que gente.