Trânsito infernal [#162]

Quando a reunião começou e você tá na metade do caminho, quando o filme tá nos trailers e você ainda nem comprou o ingresso, quando seu filho te espera na porta da escola e você esqueceu a hora, quando sua bexiga tá explodindo, quando pegou fila no mercado e o jogo do timão já começou e você sabe que não vai chegar a tempo de ver o gol que algum desgraçado vai inventar de fazer nos 5 primeiros minutos.

Quando você tá atrasado. É aí que percebe como o trânsito é mesmo um inferno.

Não adianta teimar. É a condição humana. É a burrice. É a atrocidade que alguns pretensos motoristas e motociclistas chamam de “habilidade”. É a noção de que a rua é um florido parque pra passear de mão dada num domingo abafado. É a presunção de que a pessoa no outro veículo vai ter a consciência que você não tem de que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo, e vai frear, dar a vez, deixando você sambar pela pista como se fosse sua, como se a sua maldita pressa fosse mais importante que a de todo mundo.

Tem uma palavra pra isso: sociedade. Uma sociedade de animais paleolíticos agarrados aos volantes, as latarias tão beijadas no furor do horário de pico que uma mosca não passaria pelo vácuo, um jogo de tabuleiro absurdo, um Jumanji multi-colorido marcado por aquele caminhão de frete arrebentado que lambuza diesel pela pista e perfuma tudo com fumaça cítrica e cancerígena, um filme pipoca de Hollywood com antagonistas previsíveis, que preferem ocupar a contra-mão num cruzamento a ficar na fila de dois carros, APENAS DOIS MALDITOS CARROS, escolhendo atrapalhar TODO o trânsito da região ao invés de esperar os 5 segundos que uma pessoa moralmente capaz esperaria, NA MALDITA FILA. É por isso que criaram a fila, seu imbecil, pra ninguém ter essa ideia maravilhosa e cagar tudo.

O trânsito transforma. É a anti-pedra filosofal, convertendo calma em desespero, paciência em raiva, paz em homicídio. O trânsito causa gastrite, azia, dor de cabeça, depressão, suicídio. O trânsito faz bullying. O inferno é uma rodovia infinita e congestionada, tocando a discografia do ABBA em todas as rádios, e quando você acha que nada pode piorar um motociclista quebra o seu retrovisor, ouve você gritar, mostra o dedo e vai embora.

E aí você reza pro papai do céu pra um dia morar a uma quadra do trabalho, pra academia ficar na rua de baixo e o mercado na de cima, pra tudo ser perto e você não precisar depender de carro, moto ou ônibus pra alcançar as expectativas que nunca vão ser alcançadas e matar a hipótese de uma felicidade que, convenhamos, é utopia.