Vontade é coisa mambembe

Sempre que passava um circo pela cidade lá tava o seu Valdivo pendurado na grade, a silhueta da roupa dele recortada pelas luzes coloridas, as costas bem retas, a cabeça de um lado pro outro, seu fiel hipopótamo parado do lado, olhando pra dentro também. Os dois largavam a carroça empinada no chão e respiravam aquilo, mergulhavam os olhos naquela atividade barulhenta e viva do circo, de longe. A gente sempre cumprimentava eles, o seu Valdivo falava opa e o hipopótamo, que a gente chamava de Chico embora o dono insistisse que ele preferia Francisco, o Chico não cumprimentava de volta não, ficava ali pasmado com aquele olhar bovino, bovino é a palavra errada, melhor olhar hipopotámico, que combina mais, aquele olhar perdido de quem morreu dentro do corpo, que parece que vem de dentro da cabeça e atravessa as coisas e cola no alvo mais por costume que por vontade, sabe. Ficavam ali a noite toda e às vezes a gente dava resto de alguma coisa pro seu Valdivo comer, e muito de vez em quando dava pra pegar de relance ele fazendo um carinho nas bochechonas do Chico, o bicho estacionado, arriado.

Nossa teoria é de que o Chico fazia isso pra lembrar do passado dele, já que tinha vindo do circo, uma trupe antiga que o abandonou aqui com uma micose feia nas patas traseiras que ia avançando pro resto do corpo e minava as forças, e seu Valdivo ficou cuidando dele no sítio até o veterinário chegar da cidade, cuidou do bicho como quem cuida do filho, e mesmo contra as palavras do médico o Chico melhorou e passou a viver com os bois e os cavalos tudo junto e irmanado. Todo circo que passava perguntavam quanto o seu Valdivo queria no bicho, porque é demais de atração no Brasil um desses, ninguém entendia como ele veio de navio sozinho e viveu sozinho aqui tanto tempo e teve força pra se curar da micose feia sem remédio nem nada, e o dono dizia que o bicho nasceu forte mesmo, feito gente destemida. Os outros futricavam mas eu não dava bola não, que o que teve ali no sítio do seu Valdivo foi bruxaria, já que ele matou todos os porcos quando o Chico chegou e não vendeu, e só ele sozinho não ia conseguir comer, e todo mundo sabe que o Chico detesta carne e o que fizeram com os porcos então, só podia ser, diziam, que ele deu a vida daqueles todos pela vida daquele um.

Fato é que depois desse circo que trouxe o Chico eles continuaram vindo, de todos os tipos e tamanhos e atrações, e a gente achava engraçado os dois olhando pra dentro, lá de fora da grade, olhando pras coisas e pras pessoas animadas, e faz tanto tempo que eles têm vindo que eu me pergunto mesmo se algum dia pararam de vir, parece que um colou no outro e no outro e no outro e a gente foi se deixando ficar e quando viu tava equilibrando faca na cabeça e fazendo malabares e correndo atrás de maquiagem pros palhaços e vendo se os trapézios e os caixotes de serra tavam arrumadinhos e ficou parecendo, depois de um tempo, que na verdade não é bem que o Francisco tinha o olhar perdido, o olhar dele não parece nem um pouco perdido quando a gente quer fazer uma pausa pra dar uma descansada, parece queimar no lombo já que o circo não pode parar, e mesmo aquele velho carinho que o seu Valdivo faz nas bochechas dele, que a gente sabe que nasceu do amor incondicional de quem foi deixando de cuidar do sítio pra se mudar pro trailer ali perto da grade, não parece mais carregado de amor, como não parece qualquer tipo de coisa hipopotámica que o seu Valdivo faz nesses dias, vira e mexe é nos olhos do seu Valdivo que agora a gente vê aquele olhar perdido antes dele entrar pela portinha do trailer de gerente onde foi morar.