Drokkars

Passo a maior parte do tempo num estado sonolento e esquecido, patches sedativos pelo corpo. Quando preciso, engulo um estimulante pra conseguir um período de raciocínio pleno.

Como me encontraram no mesmo planeta onde desapareci e fui considerado morto, os militares presumem que não cheguei ali na bolha, mas que sobrevivi exilado todos esses anos. Depois da bateria de questionamentos, abordo um comandante de médio escalão confiável e descortino o plano bokartiano. O choque é grande mas ele corresponde aos meus anseios de confidencialidade e de buscar integrantes para a nossa célula. Aposentado compulsoriamente para tratar dos problemas de saúde, permaneço nas instalações de Carcará-2 sob o pretexto de consultoria em assuntos estratégicos. Sou diagnosticado, dessa vez, com carcinomas por todo o corpo. A segunda travessia me foi quase tão mortífera quanto é para os drokkars.

Nossa medicina já evoluiu o suficiente para me manter vivo até levar o plano a cabo. Dentro do pacote de informações há as diretrizes para a construção do canhão de pulso eletromagnético. Os bokartianos estudaram em que ponto de evolução tecnológica estávamos e providenciaram os devidos atalhos. Trabalhamos em ritmo acelerado para terminar dentro do prazo para o disparo conjunto. São anos de dedicação. Com a diferença de que em meu próprio quadrante galáctico estou livre para ir e vir.

As coisas que não pude fazer em Rupakau-ri faço na Terra, quando o tempo livre e os períodos sem sucumbir às dores permitem. Revejo a família, assisto holo filmes no cinema, vou à praia, como tudo aquilo de que sinto falta. Conheço Fabí, uma engenheira sem relação alguma com os militares. Engatamos um relacionamento, coisa que não imaginava mais possível. Não poder lhe revelar nada do que faço tem um efeito devastador. Me pergunto se não devo abandonar tudo e aproveitar meus últimos dias ao seu lado. É óbvio que não serei afetado pelas consequências em meu tempo de vida, tampouco meus filhos, caso os tenha. Mas lembrar dos drokkars aprisionados e imaginar nossos descendentes em seus lugares é suficiente para me fazer seguir com o plano.

As dúvidas mais elementares ressurgem em toda reunião da célula. Se desligarmos o escudo e revelarmos o plano dos celestiais, o que virá em seguida? Se podem nos programar neurologicamente, como fazem com os drokkars, por que não o fazem? Por que se dar ao trabalho de nos convencer? Suspeitamos que sua natureza conciliatória favoreça a abordagem menos traumática. Nunca vimos sinal de agressividade neles. Talvez seja simplesmente menos custoso dessa forma.

Realizado nosso intento, a humanidade será confrontada com a verdade: além do escudo não há ameaça alguma, apenas o vazio do espaço. O que farão os militares, nossos superiores, diante disso? Abrirão fogo contra a nave celestial? Tentarão o diálogo e serão novamente ludibriados? Se curvarão e assumirão a covardia segura da servitude? Não sabemos. Mas isso nos não nos impede de lutar para que a chance de tomar a decisão chegue.

Meus filhos já estão crescidos quando alcançamos o prazo. O canhão foi construído e acoplado numa nave abandonada. Tivemos tempo de sobra para inventar uma justificativa para a sua reforma e reativação e para a aproximação da grande nave celestial, o alvo. No dia decisivo, todos os integrantes da célula se reúnem na base diante das telas, apertando os dedos.

O disparo é efetuado. Na verdade são alguns segundos enquanto o núcleo energético do canhão é sobrecarregado e outros segundos observando a descarga percorrer o vazio até alcançar a nave. Antes disso podemos ouvir os comunicadores de bordo emitirem os sinais de emergência. Os celestiais sabem o que os aguarda. Ninguém responde. Quando o disparo atinge a camada externa da embarcação e a percorre, uma luminosidade que logo desaparece, vemos o escudo celestial vibrar, piscar e desaparecer.

No lugar do negrume encharcado de estrelas e asteroides, figura em destaque o monstruoso cruzador drokkariano, visto tantas vezes nas imagens e nos vídeos que julgávamos falsos, rodeado pelas estações de combate com os canhões enfileirados, os cargueiros grávidos de explosivos, as minas seletivas de proximidade boiando no ar como lantejoulas da morte.

Todos na sala se entreolham enquanto massageio a cabeça. Percebo que as pontadas de dor se devem aos implantes neurais e que os carcinomas no meu corpo se devem não à radiação do escudo, mas ao período de exposição às toxinas drokkarianas em algum ponto da base subterrânea onde fui mantido cativo. Tento explicar mas alguém, mais de uma pessoa, fecha os dedos em minha garganta, e não consigo gravar a mensagem para Fabí e as crianças dizendo que as amo.


Esta é a sétima e última parte da série de aventura espacial Os Celestiais e os Drokkars. Confira as demais:
1 – Celestiais
2 – Recruta
3 – Travessia
4 – Bokartianos
5 – Estratagema
6 – Catapulta
7 – Drokkars